segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

Balada para uma serpente - Texto completo



Tela de Rinaldo Silva, exclusiva para este blog.


CAPÍTULO 1 – Parte 1.
Blues - (Since I’ve been loving you, Led Zeppelin).

O corpo flutua na vastidão azul, afundando em câmera lenta. A água salgada irrita a mucosa do nariz e em segundos encharca os pulmões... Sobressaltado, tenta levantar-se, mas, a cabeça feito peão o derruba, zonzo, na cama. Trôpego, vai até a cozinha sentindo ondas de suco gástrico ainda brigando com restos de cerveja na barriga. Senta no primeiro lugar que encontra. A língua, aquele corpo estranho dentro da boca, esturricada, amargando. Silva escorrega do banco e cai sentado no chão. Que coquetel infernal: ressaca e pesadelo! O olhar irritado tenta identificar que diabo de lugar é este. O suor escorre do pouco cabelo que conserva dos anos 70, faz uma parábola e toca a boca seca. A geladeira enorme, daquelas de porta dupla, o encara com ar solene. E frio. Torradeiras, fritadeiras, batedeiras, cafeteiras, verdadeiro desfile de “eiras” eletrônicas rodopiam sobre sua cabeça. A cabeça dói. E como dói. Quer acreditar que é a cozinha de um comercial que ele nunca criou, em toda sua carreira de publicitário. Mas é real. Ele está ali. Mas onde?
Do alto da indiferente geladeira um sorriso esmurra o torpor, acendendo fagulhas no breu de sua memória. A foto da Galega! É ela que pisca em sua mente como splash de anúncio vagabundo. Sem tirar o olhar daquelas retinas dissimuladas, esforça-se terrivelmente e levanta. As costas reclamam o frio da cerâmica. Prefere estar morto: os mortos não sentem o frio da pedra. Só alívio.
Na cabeça as cenas dançam em confusão. Ele levanta e desce o corpo sobre a Galega que tenta agarrar seus poucos cabelos. Tudo muito impreciso na memória. Ela enrola entre os dedos o rabo de cavalo que desce da quase careca, puxando com força o corpo dele para dentro do seu.
Silva, ofegante, rumina que, porra, tudo que ele queria na noite anterior era ficar perambulando pelo Bar Royal, olhando o mulherio dos maracatus passando pela rua! SDepois, ir até o Burburinho pegar a velha sessão de blues e terminar de encher a cara.
Dar de cara com a Galega em plena semana pré-carnavalesca...
Por esta ele não esperava.

Estar entre aquelas longas e grossas pernas que desfilaram na sua cara, esnobes, por tanto tempo inatacáveis. Afinal, era sua cliente; e mesmo que hipnotizado pelos dedos torneados, envoltos nas finas tiras das sandálias de salto alto e perfurante, cliente é cliente. O pior é que a Galega teimava, passando, indo e vindo, com aqueles tornozelos torturantes. Silva não arriscaria o cargo de diretor de criação, mesmo que fosse por causa tão nobre como aquelas maravilhosas e douradas pernas. Nem por aquele corpo talhado por tecidos tão impróprios quanto finos. Eu sabia, tinha certeza, que aquele olhar enviesado para o meu lado, nas reuniões de briefing, não era à toa, resmunga, sentado no chão frio da cozinha, enquanto olha para a foto da Galega sentindo mais ressaca que remorso.
Inacreditável, mas estava ali, entre as pernas da Galega. Beijava-as e passava a língua, ainda não ressecada, pela superfície dos pelos amarelados. Lembra-se de Van Gog entre girassóis. A dor de cabeça e o enjôo trazem Silva de volta ao casarão à beira-mar.
Outro banco distraído na cozinha o faz cambalear, obrigando Silva a um malabarismo para não cair com a cara na pia. Tropeça até o corredor que tem pequenas gravuras com motivos marinhos na parede. O barulho das ondas o carrega até à sala, ampla e fresca. Móveis rústicos e luminárias sinuosas. Que sala! Do tempo em que ainda se fazia casa para gente morar e não as caixas de fósforos de hoje. Pé-direito alto, arejada. A grande porta de vidro lhe impede de transpor a divisa com o terraço, que fica de frente para o mar de Candeias.
A rede no terraço joga de um lado para outro, preguiçosa recebendo o carinho do vento. A Galega montada sobre ele deitado na rede. Com seus dedos grossos, torce suavemente os bicos enrijecidos dos pequenos peitos, fazendo a pele dela arrepiar. Quantas vezes, mirando a precisão arquitetônica das coxas da Galega, lia e relia os briefings imprecisos que seu chefe, o Bob, redigia. Eram pequenos espasmos de prazer na rotina louca da agência. Frestas que deixavam passar o jogo de sombra e luz da sedução. Mas, eu achava aquilo tudo impossível, doidice da minha cabeça tarada... Silva encara o rosto no vidro da porta.
O mar joga o eterno ir e vir. O tempo se perde na memória embriagada.
Consegue abrir com dificuldade a porta de vidro. Inala o ar salgado e vital para seus pulmões boêmios. Ah, maldita ressaca, nunca mais outra dessa! Enquanto sorve a brisa, busca no horizonte entender como saiu do Burburinho para Olinda e foi parar em Candeias, do outro lado da cidade. Não tem a menor idéia. Uma bolacha, daquelas que ficam sob as tulipas de chope, brinca rodando perto da carranca sisuda que decora o terraço: Atlântic Blues Bar. O luminoso acende em sua mente. Silva fecha o punho com raiva e bate na cabeça. A dor da ressaca explode, junto com a lembrança da noite passada. Pneus gritam na rua de pedras imprecisas. A porta do carrão abre-se à sua frente, fechando o caminho... O coração de Silva quer pular garganta a fora. Não é possível, você...

Silva sai da Rua da Moeda, onde o Mestre dos Maracatus ensaia a abertura do Carnaval com um mar de batuqueiros que enche a rua de uma ponta à outra. O som das alfaias ecoa por todo Recife Antigo. Meio cambaleante passa pela enézima vez pela Rua Tomazina, só para ver se cruza com alguém para tomar a saideira. A Bad Company destila rock and roll no Burburinho: Dylan, Beatles e stones dançam na noite, misturados ao som do maracatu. Os olhos imprecisos mal conseguem ver quem é quem em meio à fauna fantasiada de maluco-do-carnaval, uns totalmente de preto, outros com barbas coloridas, alguns carecas com uma única e fina trança escorrendo pelos ombros, jornalistas fantasiados de intelectuais, todos envolvidos pela fumaça canabiana. A moldura daquela tela alucinante é feita de paredes sujas, rachadas e pichadas. Na verdade aquilo não é rua e, sim, um beco sombrio onde se dá luz a projetos culturais, revoluções intergaláticas são urdidas e bandas das mais diversas cores sonoras são paridas, embrenhadas na madrugada.

Silva virou à esquerda em direção à Rio Branco, cumprimentou amigos em uma mesa enferrujada, torta no chão de pedras irregulares. Tomou um gole de cerva no copo de uma gata que estava na sua mira já há algum tempo e, como o último anjo da guarda ainda está acordado, não senta com a galera. Vai embora, olhando as mesas enfileiradas nas calçadas encardidas ou sobre as pedras ressacadas pelo tempo. Em cada porta velha, um boteco diferente com gente enchendo a cara de cerveja, whisky ou tomando cana acompanhada de sardinha em lata com farinha. Todos tentando se equilibrar em tamboretes velhos ou em cadeiras enferrujadas que, sem avisar, balançam junto com às mesas, de um lado para outro, na incerteza da rua de pedras escuras.
A decoração do Carnaval já está quase pronta, mas alguns funcionários da prefeitura, ainda penduram coloridos caboclos de lança aqui, passistas acolá. As cores da folia, o ventinho morno que vem do porto, o velho casario do Recife Antigo e o pulsar das alfaias conduzem o zonzo Silva. Tudo incerto naquele juízo de pensamentos que marcam hora, mas nunca se encontram. Mas Silva sabia, tinha certeza que naquela noite resolveria a história com Guta, que se encontraria com ele em Olinda, no Atlantic Blues Bar.
Até que o carrão freia bruscamente, pára ao seu lado, a porta se abre... A Galega o convida para entrar com um gesto rápido da cabeça e olhar devorador.
Canalha, galinha!! Sua ex-mulher tinha razão. Silva olha, meio tonto, para os coqueiros na dança eterna, embalados pelos ventos oceânicos... Como pode marcar com a Guta no Atlântic Blues Bar, tentando como Dom Quixote reatar o casamento e, no fim da noite, terminar enfiado entre os girassóis da Galega? Imperdoável. Quis socar a própria cara. Na verdade, no fundo da cabeça rodopiante, sabe que não passa de teatro barato, que a consciência pesada improvisa para apagar os erros que cometemos. Também não tem força para socar nada e a cabeça o tortura no fim de tarde domingueiro. Legal vai ser a próxima reunião de briefing com toda essa merda emoldurada por aquele decote, os tecidos finos marcando suas curvas, a boca carnuda explicando posicionamentos da concorrência e metas de vendas; e cafezinho, temperado com furtivos olhares de cumplicidade.
Amália, sua filha com Guta, aparece em seu devaneio, piorando o enjôo. A lembrança lhe corrói ainda mais o estômago e a consciência. Há quase seis meses tenta retomar a vida com a ex-mulher e a filha, mas tudo dá errado. Acertou de ficar com Amália em alguns finais de semana. E até vinha cumprindo direitinho. Cinema, praias, shopping e comidinhas em casa. Vez por outra umas rosas, livros e até mesmo vinhos de presente para Guta. Mas, não tinha jeito na vida, mesmo. Só arruma confusão, principalmente entre pernas deliciosas. E a cabeça rodando, rodando. Semana que vem a gente se acerta e tudo fica legal. Batem as alfaias na Rua da Moeda. Garçom, mais uma cerveja! Não olhe pra mim, gatinha, que sou casado...
A roupa molhada de suor. Silva entra por onde saiu de marcha à ré. Cruza novamente a sala, outro corredor, um quarto, dois e no terceiro: a cena do crime. A enorme cama de jacarandá. Um Maracanã erótico, sem exagero nenhum. A Galega escorregando pelo seu peito, ágil como uma serpente, dá um bote entre suas pernas. O prazer sobe em ondas, o mar lá fora explode nas pedras. O calor cresce, molha os lençóis. A brisa faz dançar os coqueiros e os sonolentos pés de caju. A maresia, que passa assobiando pelas brechas das janelas, salga a pele arrepiada. As ondas vêm e vão, vêm e...
Guta chega tarde ao encontro. Já esperava ouvir Silva reclamar do atraso. Entra meio ofegante no Atlântico Blues Bar. Olha o grande praticamente vazio com apenas um cara bebendo no balcão. A respiração vai ficando mais calma enquanto ela caminha lentamente entre as mesas, olhando em volta. Nada do Silva. Guta se volta e anda com passos firmes até a porta do bar. Para, respira a brisa morna que vem da praia. Barcos flutuam calmos de um lado para outro. Bem, uma cerveja não faz mal a ninguém.
O silêncio se rompe com os primeiros acordes de Since I’Ve Been Lonving You, do Led. A guitarra de Jimmy Page rasga a noite. Será que o Silva aparece? Ou vai levar outro furo? Fica olhando, distraída, a dança das bolhinhas de cerveja dentro do copo, olhando de um lado para outro, sem a ansiedade dos namorados. É... acho que merecemos mais uma chance, mas só uma e já chega! Cadê esse cara... O celular toca, Pedrão pisca no visor. Clique, desligado. A primeira cerva desce rápido. Mais uma, geladíssima, por favor!
Do balcão um rapaz observa as pernas pequenas, mas, bem torneadas daquela morena de cabelos curtos e nariz arrebitado. Camiseta sem sutiã e um slogan escrito em letras formadas por bandeiras de todos os países: Vive lês femmes. O jovem de cabelos encaracolados pega a garrafa de cerveja entre os dedos e caminha lentamente para de Guta. Ela percebe o movimento e vira de lado, procurando o garçom. Mantém-se de costas para o conquistador que se aproxima.
- Tá sozinha, gata?
- Nunca! Garçom, por favor, mais uma cerveja.
O cara sai de lado, bebendo a cerveja em um grande gole. Caminha lentamente observando a decoração do bar, como se nunca estivesse bebido naquele boteco.
Aposto que o Silva encheu a cara e esqueceu o encontro. Mas, ele me paga se furar comigo outra vez. Juro que o mato, faço-o em pedacinhos e jogo no mar. No mar, não, vai poluir a praia. Guta agradece ao Garçom Baixinho e promete a si mesma que só tomaria aquela, até porque não curte muito o lugar que conheceu junto com o Silva. Iria logo embora, tinha uma tese de mestrado para terminar e, definitivamente, não queria perder mais tempo com o ex-marido. Eu sabia que não devia topar esse encontro, eu sabia...
A consciência queima. Silva olha a cama desforrada sentindo as unhas da Galega arando suas costas.
À dor de cabeça soma-se a dos arranhões nas costas. O estômago dá voltas de novo. Abre o guarda-roupa, mas não encontra o que o seu corpo exige. Com a avidez dos viciados vasculha a intimidade das prateleiras. Não, ela não tem o precioso bálsamo. Silva se esforça para controlar a necessidade inexorável que arrebenta na barriga, como o mar que estoura, lá fora. A existência fica meio sem sentido, naqueles intervalos entre a tonteira e a ânsia de vômito, sem a aprazível sensação de alívio, provocada pelo néctar dos deuses que ele procura em vão. Aquela Galega deve ter algum antiácido guardado em algum lugar.
A ponta de uma calcinha lhe sorri da gaveta. Olha de lado, desconfiado. Olha mais uma vez, mirando o naco de lingerie. Não resiste, abre a gaveta. Aquele oceano de calcinhas inunda sua imaginação. Sente até um novo ânimo com dezenas de rendas, curvas, cores e o aroma da intimidade ali guardado. Silva cheira profundamente uma daquelas preciosidades, buscando na memória o cheiro dos girassóis. Rendas, sedas, algodão, detalhes de intimidade que, até então, só faziam parte dos seus sonhos e tiravam sua atenção, quando lutava com a impaciência e o tédio, tentando criar mais um comercial de ofertas, dizendo sempre as mesmas coisas: Aproveite de montão... Essa promoção é imperdível...
Senta na cama. Calcinha entre os dedos. Guta reaparece em seu delírio. Silva tenta esquecer o mar de calcinhas e a ressaca das lembranças. Cai na real e teme que, finalmente, a relação que se arrasta há quase vinte anos com a Guta tenha escorrido por entre aquelas douradas pernas, naquela madrugada.
Eu não devia ter virado aquela última dose no Burburinho, antes de ir à Olinda.
Não é você que vive dizendo que adora nossa casa, que precisa de uma relação estável, que curte acordar comigo e com Amália.
A respiração acelera, quer botar tudo para fora, enjoado, quer sair correndo, levanta e a cabeça roda de novo. Cai de novo na cama que cheira a sexo. Culpa sua? Não. Da Galega, talvez. E da Guta também. A transa com Pedrão, não conta? Que safado, aquele Negrão. Seu melhor amigo e, pelas costas, chifre. Cheio de ginga com o cabelo rastafari e conversa de afundar porta-aviões levou a melhor com a Guta. Um estrondo. O carro do vizinho foi atingido por um coco que não suportou o rebuliço da noite.
O vento bate a porta do guarda-roupa, estrondo no quarto. Silva pula, quase desmaia com a tontura sem fim. Ia fechar a porta e, enquanto passa a mão na testa suada, vê um rosto conhecido no alto da prateleira, entre pastas de papelão e a caixinha de prata cravejada de pedras, onde a Galega guarda anéis e brincos. A foto de Pedrão lhe sorri. Retratos lhe perseguem neste quase anoitecer de domingo. Silva esfrega os olhos. Acha que está viajando. Olha de novo e Negrão insiste, encarando-o com aquele sorriso sem-vergonha. A mão treme, mas não o suficiente para impedir que pegue a foto, enquanto uma calcinha lilás descansa desprezada no lençol branco.
Imagens voltam a pipocar na cabeça do Silva. A Galega, Since I’Ve Been Loving You, o mar, o chope, as alfaias do maracatu, Guta, Amália, as gravuras do corredor da cozinha, o coco no carro do vizinho, os girassóis de Van Gog e o Pedrão. Que diabos fazia aquele retrato do Negrão na casa da Galega? Eles nem se conheciam. Será que não? Silva mira o retrato:
- Até a Galega, brother?



CAPÍTULO 2 - Moleques do mangue (A Cidade, Chico Science e N.Z).
Pedrão nasceu em Peixinhos, periferia de Olinda. Na época, moleque encapetado, tinha o apelido de Pelé. Escondido da mãe, Dona Bia, escalava barreiras, corria pelas campinas atrás de aventura, dos banhos nos açudes da Fosforita. Eram imensos, batizados de Poço Azul, Poço Branco, desafiavam a coragem da molecada porque eram fundos e o leito tinha uma espécie de lama preta, que fazia os pés grudarem provocando afogamentos.
Tinha pescaria nos fins de semana. Bastava uma varinha vagabunda comprada na feira ou improvisada com qualquer talisca de bambu, fio de nylon e anzol mosquito. Isca na água e logo se sentia o prazer da beliscada dos caritos e carás. De puçá na mão, Pelé se metia entre a vegetação dos açudes para pescar beta e lebristas, ladeado por seu parceiro inseparável, Chico, pirralho astucioso. Morava em Rio Doce, mas passava muitos sábados e domingos na casa da tia, vizinha de Pelé. Era o inventor da turma, fazendo carrinhos de lata, revólveres de madeira e papagaios. Vivia cantarolando. Gabava-se de conhecer tudo quanto era música. Amostração de fedelho.
A música também corria nas veias de Pedrão. Ele, na verdade, não tocava nada. Por preguiça ou inquietação fugia das aulas que o pai, músico da noite, insistia em marcar aos domingos. O avô, aos oitenta e sete anos, ainda regia a banda Lira da Tarde, em algum vilarejo do Agreste.
A pobreza poderia até passar despercebida, se não fosse pobreza. Para comprar bola de gude, peão ou rodinha de madeira para os carros mirabolantes que cruzavam calçadas feito Cadilac, os meninos vendiam picolé ou faziam mandados, em busca de trocados. Capinavam terreiro, carregavam balaios de feira e iam à padaria, no início da noite, de onde voltavam carregados de sacolas, trazendo pães doces, crioulos e bolachões para a vizinhança.
No domingo, perto da igreja de Nossa Senhora da Ajuda, tinha a feira das redondezas, grandiosa para os infantis aventureiros. A imensidão dá o tom do olhar de uma criança. Tudo na memória adulta remete a coisas grandes e espaçosas: livres. Pelé e Chico corriam pelos bancos de feira, furtavam fruta, pediam lasquinhas de pé-de-moleque. Os feirantes faziam de conta que não os viam botar serigüela na boca e pitomba no bolso.
No final da feira, junto ao poste do alto-falante, sentavam-se em meio aos balaios. Entre emboladas, sucessos da Jovem Guarda e muito brega, devoravam o apurado do dia. Chico comia e solfejava canções com a boca cheia.
E no carnaval? Aí era demais. Chico fazia La Ursas com caixa de papelão; e com a horda de pirralhos tomava as ruas, batendo latas e cantando “a La Ursa quer dinheiro, quem não dá é pirangueiro”. Teve um destes carnavais, que nenhum dos dois lembra exatamente quando, nem onde, que eles se encontraram com o maracatu.
Perguntando hoje a Pedrão, quem sabe afirme que estavam indo para Olinda, quando tudo aconteceu. Ficaram paralisados. Os olhos de Chico, arregalados, brilhavam e não conseguiam vislumbrar mais nada em volta. Nem o bago de jaca mole que Pelé lhe ofereceu foi notado. O cortejo passava, rei e rainha faziam evoluções. Brilho, muito brilho e cores fortes. A Calunga, boneca negra carregada pela rainha louvando os ancestrais, rodopiava na marcação sincopada dos instrumentos de percussão. O vermelho e o amarelo das roupas brilhavam exuberantes, evocando a coroação dos reis das nações africanas. Tambores repercutiam no peito de Chico. Este ritmo, tal qual cicatriz sorridente, ficaria encravado em sua memória.
Normalmente tagarela e brincalhão, Chico passou o resto do dia calado. Pelé chateado com a leseira do amigo, logo, impaciente como todo moleque, correu sozinho, para brincar em uma troça, que levantou poeira tocando Vassourinhas, frevo de rua dos mais endiabrados. Aos primeiros toques dos clarins, deixou-se levar pela hipnose coletiva da folia.
O carnaval entrou no sangue destes meninos feito vírus, incurável, que se manifesta em surtos toda vez que os clarins de momo anunciam o reinado do frevo. E mesmo quando se está longe da corte carnavalesca, instaurada em Recife e Olinda, o vírus rompe o período de encubação e, quando menos se espera, eclode das formas menos esperadas.
Aconteceu com Pedrão quando sua família foi tentar melhorar de vida, mudando-se para São Paulo. Na verdade o surto acometeu a tia de Negrão, quando passavam um tedioso carnaval no litoral santista. Nuvens de cinza pesado encobriam o sol, deixando aquele sábado de Zé Pereira mais triste ainda para os pernambucanos exilados. Os paulistas curtiam o mar com avidez mineira; e nem se lembravam que era carnaval. Os parentes de Pedrão tentavam acalmar a caldeira carnavalesca que agitava seus corações, enchendo a cara nos botecos da praia, que só tocavam Demônios da Garoa ou Carmem Miranda.
No fim da tarde, o vento batia forte e frio. Pedrão e alguns primos já estavam enrolados em toalhas, com os dedos roxos e engelhados. Os olhos de todos saltaram da órbita quando a tia de Negrão, com expressão carregada de tristeza, subiu no banco. Fez uma pequena pausa para se equilibrar: era um tamborete de pernas irregulares e as suas próprias pernas já não obedeciam por causa da enésima caipirinha. Pessoas em volta levantaram-se espantadas com a cena. A tia mais velha tentou segurar a mão daquela acrobata etílica, e foi rechaçada com um banho de cerveja. Com esforço tamanho, que fez o rosto ficar cor de brasa, a alpinista passou do banco para a mesa.
O vento jogou no chão guardanapos e maços de cigarro desprevenidos. Copos e garrafas caíram, aumentando a confusão. O dono do bar largou um drinque que preparava e se dirigiu à mesa. Tinha certeza que aqueles paraíbas barulhentos iriam estragar o dia. Parou no meio do caminho. A equilibrista, do alto da mesa, mirava a todos imponente em sua nobreza embriagada. Ergueu o copo. Impôs eternos segundos de absoluto silêncio. A platéia, emudecida e paralisada. Calada, com o copo em riste, a tia de Negrão chorou.
A chuva despencou, tangendo a platéia para o abrigo dos quiosques. A foliã impávida respirou fundo, controlando o pranto, e cantou um frevo de bloco desentoada, desafogando o coração: “Felinto, Pedro Salgado, Guilherme, Fenelon cadê seus blocos famosos / Bloco da Flores, Pirilampos, Apois Fum, dos carnavais saudosos... Recife adormecia, ficava a sonhar ao som da triste melodia”...
Pedrão foi crescendo com esta imagem na cabeça. Jurou que, se um dia fizesse um filme, esta cena lhe serviria de inspiração. O tempo passou, voltou a Recife, cresceu e não fez filme nenhum.
Foi morar no Alto José do Pinho, morro da periferia recifense. Conviveu com a violência que gera a morte, mas que também, sofrendo metamorfose criativa, pariu uma das vertentes musicais mais profícuas do Recife. Energia contestatória explodiu das veias de jovens empurrados para a marginalidade, em território excluído do mundo colorido das telenovelas enlatadas. Bandas de todos os matizes encarnaram corações rebeldes em distorcidos solos de guitarra. Em urros que cuspiram na cara da hipocrisia, revelando que ali, do alto de onde se mira a muralha de concreto da cidade, eclodiu, entre a lama das páginas policiais, uma nova perspectiva de vida.
A música sempre rastreou as pegadas de Pedrão. Até na faculdade, onde cursou jornalismo, envolvia-se com a propagação de novos sons, redigindo artigos para jornais estudantis.
Pedrão descolou o primeiro trabalho em uma emissora de televisão. Era editor de texto de um telejornal. Lapidava as palavras com maestria e ritmo. Os repórteres tinham simpatia especial por ele, porque recebiam toques precisos de como melhor elaborar as matérias. Tomavam umas e outras depois do expediente, comentando as reportagens, na maior camaradagem.
Em uma dessas bebedeiras, Pedrão engolia a cerveja após brindar com os dois comparsas de copo, que dividiam a mesa com ele. A gelada mal passara por sua garganta quando viu Chico entrar no Cantinho das Graças, boteco ilhado entre mangueiras, cajueiros e prédios de luxo do bairro nobre das Graças.
Negrão quase engasgou. Abraçaram-se e bateram as mãos, repetindo o gesto da infância que festejava as vitórias de moleque. Surpresa foi sacar a mesma intimidade entre Chico e Fred, amigo de telejornal, que estava à mesa ao lado de Renato - outro parceiro inseparável - e uma pilha de garrafas. O grupo andava junto feito corda de caranguejo. Bebiam, ouviam rock, hip hop, reggae e bolavam revoluções que libertariam o mundo do capitalismo e, principalmente, dos caretas. Pedrão não acreditou que o destino fizera a ponte entre seus amigos. A euforia tomou conta da mesa, com todos falando em voz alta e ao mesmo tempo.
- Pedrão! E ai nego véio? Que data!
- Não acredito que vocês se conheçam.
- Das antigas, Fred. A gente foi moleque de feira e da lama dos açudes de Olinda. Pescando beta e pegando siri, galera.
- Vocês tocavam juntos também, Chico?
- Esse Negão só tocava punheta.
Pedrão, Renato e Fred caíram na risadagem. Pediram mais uma rodada de Ele e Ela, aquele caldinho de feijão com charque e ovo de codorna, acompanhado de cachaça. A lapada de cana selou o encontro.
De repente Chico ficou sério, inclinou o corpo sobre a mesa em direção a Renato e Fred.
- Peguei a batida do maracatu, misturei com hip hop e umas guitarras pesadas.
- São os impulsos via satélite da globalização se mixando com o manguezal. Podes crer, Chico. Que viagem!
Fred sacou uma caneta e começou a rabiscar no guardanapo. O papel úmido de cerveja foi passando de mão em mão. Enquanto a cachaça descia, as idéias afloravam.
A lua recortava a noite por entre as fruteiras. Depois da quinta saideira, Pedrão despede-se da turma. A causa era justa, explicou. Tinha gata à espera.
Na manhã seguinte, Fred chegou à TV com uma fita cassete na mão, embrulhada em folha de caderno. Mostrou o som a Negrão que achou esquisito, mas gostou. Havia na química sonora ingredientes do rock, que ele adorava, e a batida do maracatu que lhe acompanhava desde os tempos de moleque.
Na folha de caderno, redigido à mão, o Primeiro Manifesto Mangue: “Caranguejos com Cérebro”.
O embrião do Mangue Beat estava em gestação nos subúrbios recifenses e logo em seguida ganharia adeptos no interior de Pernambuco e pelo Brasil afora, com os pés, ou as patolas de caranguejo, fincados no amálgama da cultura popular e do universo pop, escreveu Pedrão anos depois, em matéria especial sobre o Mangue.
Dia destes, durante show de várias bandas da cena pernambucana, Pedrão lembrou a Renato da primeira apresentação de Chico, em um boteco chamado Espaço Oásis. Era pura diversão. Poder tocar, beber, dançar e reunir a turma. Chico dizia que era diversão levada a sério. Renato pegou duas cervejas. Fizeram um brinde à Loustal, banda que antecedeu a formação da Nação Zumbi, nos primórdios do Mangue.
- Negão, naquela época, acho que ninguém imaginava que o Mangue fosse detonar.
- Sei, não, brother, o pique sempre foi muito grande. Desde aquele show fiquei com uma pulga atrás da orelha me dizendo que a sacada de juntar maracatu, hip hop, embolada, techno e rock daria o que falar.
- Pois é, e a mistura não tem fim, nem limite. O Mangue Beat se espalhou. Lembra da Soparia?
- A Sopa foi o templo da galera. O Cavern Club dos caranguejos com cérebro.
- Quase todo mundo tocou na Sopa, fazendo um som da pesada. E de lá ganhou o mundo.
- Por falar em mundo, Renatão, Fred Zero Quatro já voltou da excursão.
- Já vai sair de novo.
- Porra! A banda decolou. Lembro, como se fosse hoje, a primeira vez que foram pra Sampa de ônibus, só com a grana da ida.
- Muita batalha, Negão.
- Legal é que dá incentivo pra galera que vem detonando. É banda pra tudo que é banda. Tem o pessoal do Alto José do Pinho com muito hard core e mais uma porrada de bairro agitando seu som.
- A galera de Vitória de Santo Antão, no Interior.
- Lá na periferia, em Paulista, também tá rolando o maior som.
- Tem Mangue até na Escócia.
- Qual é, Renatão, pirou?
- Lembra dos caras no carnaval, que saíram com a gente no Maracatu Nação Pernambuco?
- Os gringos?
- Eles têm uma banda, a Bloco Vomit. Depois daquele carnaval, piraram com o som daqui. Gravaram um CD independente que tem até música do The Clash e Sex Pistols com batida de maracatu. Saquei o disco lá na Cd Rock.
- Que doideira. Scoth das Terras Altas com o lúdico e etílico Pau-do-Índio das ladeiras de Olinda.
- É isso mesmo, Negão!
- Depois que Chico arrasou no Central Park eu disse que a gente não parava mais. Não disse?
- Até os portugas já estão fazendo o Tejo Beat, Pedrão!
- Cara, a parabólica que plugaram na lama do mangue vem ligando os doidos do planeta inteiro. Que viagem, Renatão!
A pauleira explodiu nos alto-falantes. A massa pulava formando ondas humanas, arrastando Pedrão e Renato para o olho do furacão. Um cara de cabeça raspada, com uma aranha tatuada que ia de orelha a orelha, sobe no palco e mergulha nos braços da plêiade tribal, celebrando a rebeldia em vôo imaginário pelas nuvens escarlates do seu inconsciente.


CAPÍTULO 3- Um salto para a eternidade - (Laguna Sunrise - Black Sabbath)
Os olhos arregalados fitam o nada e nada mais vêem. A poça de sangue formada em volta da cabeça grisalha de Bob molha os sapatos da platéia, que se aglomera para ver o espetáculo da morte.
Suicídio. Sem dúvida. Afirma o laudo da perícia, após examinar o corpo e passar um pente-fino no apartamento, onde absolutamente nada suspeito fora encontrado.
No enterro, alguém comenta que tudo ocorreu por causa de um caso, a paixão ardente que Bob mantinha fora do casamento. Fofoca, talvez. Todo mundo sabia que ele adorava as filhas e fazia tudo pela família. E que homem não tem a sua outra? Nada de mais que tivesse uma filial amorosa, só para relaxar de vez em quando, comentavam em mesa de bar os amigos mais chegados.
Só que a outra era outro. Não. Ninguém acreditou na história que o Bob era veado. Não. O Bob não. O Bob sim. E o jeitão de machão? A fala grossa e imperativa? O casamento?
- Coisa de depravado, mesmo.
- Pois é, dizem que mesmo quando é natural, toda morte de veado é passional. Não é mesmo, cara Elga.
Apesar de discreto e da rispidez no falar, Bob mantinha um caso com outro cara há muito. Dizem que a história rola desde solteiro e que o outro desfruta da intimidade do lar.
O cortejo fúnebre segue, deixando um rastro de maledicência no cemitério.
- Ele ficou rico muito rápido.
- Sei que trabalhou duro. Sempre chegou à agência antes de todos.
- Vender uma campanha como ele vendia é invejável.
- Picareta.
- Que cara-de-pau esse Bob, não acha Elga?
- Fala baixo, Raposa Velha.
- Perdão, querida Elga.
- Custei a acreditar nessa história de que ele era gay. E antes que esqueça: "querida" vai ser a sua hora quando chegar.
- Tenho certeza que vai lhe doer e que você não permitirá que esse tipo de fofoca paire sobre meu cadáver, darling.
- Defunto não constitui advogado para se defender.
- Isso é maldade sua...
- Maldade você vai ver se não fizer direito aquele servicinho que tem que ser feito.
- Eu não falho, darling.
- Já fez merda e quase ferrou o cara errado.
- Culpa daqueles incompetentes.
- Incompetente foi quem contratou incompetentes... e chega de conversa fiada por hoje. Menos papo e mais eficácia.

A viúva, distante em seu luto, e como sempre afastada daquele universo que considerava de plástico, detestável, caminhava de mãos dadas às filhas. Esforçava-se para confortá-las, sem ter sinceramente quem a confortasse. Exilava-se de vez, náufraga do destino que a trouxe para tão longe da sua terra. Bob era praticamente seu único elo com este país que não era seu e com essa gente que desprezava. Não tinha mais nada a fazer aqui, voltaria para seu país.
As portas de vidro se abrem como que impelidas por uma ventania. Elga entra na agência ainda com o vestido negro tão lindo quanto o que usou no enterro do Bob dias atrás. O tecido fino e macio entra suave e discretamente entre suas coxas, contornando as pernas grossas e bem modeladas. O olhar firme por trás dos óculos escuros e o passo rápido e elegante a levam até a sala de reunião.
- Boa tarde.
- Bom di... quer dizer, boa tarde Dona Elga. Hammet, o diretor que assumiu às pressas o atendimento da grande conta das empresas da Galega, talvez, tenha sacado de imediato a força daquele trator cheirando a perfume francês.
- Olá, como vai? Silva olha rapidamente para Elga e volta os olhos para uma folha de papel repleta de rabiscos, notas musicais em vários formatos e texturas salpicadas no branco da folha.
- Ótima, como sempre, e ainda melhor porque tive um final de semana excelente...
Silva engasga, tosse, respira fundo, tosse outra vez, levanta-se e vai ao banheiro atravessando uma porta que se confunde com a madeira que reveste a parede da sala de reunião. Com os olhos ainda vermelhos e lacrimejantes, fita o próprio rosto no grande espelho do banheiro. A tosse se esvai, ele abre a torneira que lhe faz lembrar o pescoço de um ganso e joga água no rosto diversas vezes. Imbecil! Jurei que ia me controlar, ficar frio como se nada tivesse acontecido entre mim e esta filha-da-mãe. Mas, ela tinha que chegar batendo forte só para saborear minha reação babaca. Comi, sim, e daí! Comi por que ela quis e me vive me provocando com olhares, insinuações... Até quando aperta minha mão depois das reuniões é tesudo. Bem, cara, assuma o comando e volte para a reunião!
- Desculpem. Acho que estou com alguma virose...
- Você deve estar trabalhando muito, Silva, talvez um descanso, uma praia, quem sabe...
- Não, tá tudo bem... Fora a perda do Bob...
- É, mas, os negócios não param nem para rir e, muito menos para chorar: sentimentos não pagam contas, nem conquistam mercados. Vamos tocar nossa campanha? Acho que era isso que Bob faria, se estivesse aqui, não é mesmo?
- Sem dúvida, Dona Elga. Vamos impulsionar os trabalhos, precisamos de agilidade para não dar trégua à concorrência.
Silva se senta, calado como uma pedra. Que babaca, esse Hammet! Parece um livro de marketing tagarela. Tabacudo! Risca mais uma clave de sol no folha de papel e aguarda as diretrizes urgentes da sempre urgente Galega. Ela não perde tempo, mesmo.
- Dona Elga, o que a senhora achou da nova campanha? Impactante, não?
- Não é nada disso que eu queria. Está muito igual às outras que vocês fizeram, falta criatividade...
- Quando a gente foge dos bordões do varejo, do feijão-com-arroz, as campanhas sempre voltam, sob o argumento de que “essa não é a nossa lingüagem, não tem a nossa cara”...
- Silva, você está muito reativo ou é a virose que está deixando você mais estressado?
- Acho que o Silva quis dizer é que a criação ainda não encontrou um novo caminho para as novas promoções...
- É, Hammet, talvez seja isso... Silva, tosse novamente e fica com raiva da sua falta de controle.
- Pois bem, quero algo novo, mas com a nossa cara, algo que nosso consumidor identifique de imediato como uma coisa nosso, com nossas características, respeitando nossa linha de comunicação, mas que seja criativo. Está tudo lá no briefing, basta ler com mais atenção e pensar um pouco mais. Acho que está claro...
- Eu não tenho nenhuma dúvida, Dona Elga.
- Nem eu.
- Muito bem, vamos ao trabalho. Uma boa tarde criativa para vocês. Vejo algo novo ainda hoje à noite?
- Acho que sim. Silva levanta da mesa ainda tossindo, mas de forma mais comedida.

Elga se levanta da mesa imponente, coloca os óculos escuros com firmeza e elegância. Aperta a mão de Hammet com firmeza de executivo. Silva, como não tem como sair da sala sem passar por ela, caminha lentamente em sua direção e estende a mão para cumprimentá-la. A mão e o braço levemente dourado de Elga atraem o olhar de Silva e, em milésimos de segundo, a mente viaja até à casa da Galega: Lençóis pelo chão, a mão firme dela entre as pernas dele...
- Boa tarde.
- Até a próxima, caro Silva.





Capítulo 4 - Um, dois: alívio imediato? - (It’s only Rock and Roll - Stones)
Segunda-feira, dia em que o Silva levanta da cama na marra. Só pega no tranco feito carro velho Tênis sujo em um dos pés. No outro, só a meia. A boca amargando e a cabeça dolorida. Todo boêmio tem estratégias, receita ou simpatia para diminuir o efeito devastador da ressaca. Silva as coleciona na biblioteca da memória, igual a sagradas escrituras. A mais usual consiste em tirar da cama uma perna de cada vez, erguer o corpo em câmera lenta, sentar, respirar fundo várias vezes e bem devagar. Em seguida, olhando para um ponto fixo distante, levanta-se com velocidade de lesma.
É difícil começar a semana sem apoiar a mão na parede, bem na cara de Mike Jagger, ao levantar. Comenta sempre com o pôster dos Roling Stones: “but a like it”.
Sai, enfim, do quarto, deixando para trás o rastro de sapatos jogados, toalha esquecida na porta do armário, já com cheiro de mofo, uma pilha de roupas sujas transbordando de um cesto de vime, um quadro de cortiça acumulando recados, recortes de jornais e telefones de namoradas. Arrasta-se pela sala, e como em toda segundona, ignora o jornal que o zelador deixa inutilmente por baixo da porta. Dribla o grande sofá de jacarandá, que ocupa mais espaço do que o necessário, formando estreito corredor com a estante, que combina melhor com escritórios de contabilidade.
Pratos, restos de cuscuz e suco de laranja na pia da cozinha tornam pior o início do dia... Abre a geladeira quase oca. Três latas de cerveja, salaminho mariscado de bolor, dois iogurtes seculares e água gelada. O mundo ficar melhor com água gelada e... Um, dois antiácidos. Segundos de barulhinho confortante e bolhinhas subindo. Toma de um só gole. Um pequeno arroto e pronto: novo em folha. Ou quase.
Na mesa da sala em seu silencioso aquário, Robert e Jimmy aguardam famintos, mas com aquela paciência de peixe. Silva defende a tese de que os peixes são os melhores amigos do homem. Principalmente dos solteiros e desregrados. Afinal, peixe não rosna, não late, não mia, não precisa passear para fazer coco e xixi. São bons ouvintes: escutam todas as nossas lamúrias com aquele olhar tranqüilo de peixe. E o que é melhor: jamais questionam nossas teses, por mais idiotas que elas sejam. As duas criaturas do aquário são absolutamente idênticas em sua vermelhidão. Silva afirma que Robert é mais inquieto e lembra o vocalista do Led Zeppelin, Robert Plant. E o parceiro não poderia ser outro a não ser Jimmy Padeje, guitarrista da banda inglesa. Silva coloca a comida dos silenciosos amigos. Encara-os. A retribuição é o inabalável olhar de peixe.
- Sorte de vocês não terem calendário, nem chefe e muito menos ressaca.
Robert já não agüenta mais aquele ritual de toda segunda-feira. Vira-se mexendo a barbatana com ar de desprezo. Silva detesta quando preferem ração em vez de um papo amigável.
Silva tem que vencer a segundona. Observa displicente a cara barbada no pequeno espelho de moldura metálica. Espalha o creme de barbear no rosto, deixando uma montanha da densa espuma branca de um lado e, do outro, quase nada. Mais uma vez resmunga que o barbeador não corta nem manteiga e que ao voltar do trabalho, sem falta, comprará um novo. Liga a água morna para não trincar de frio, querendo acordar o corpo lentamente. A resistência do chuveiro está pifada há três dias. Banho rápido, e frio, a contra gosto.
De toalhas volta à cozinha e descobre na geladeira um suquinho bem gelado, destes industrializados. Ele não liga a mínima para aditivos químicos e não suporta naturalismo, com seus homens e mulheres verdes com cara de doente. Inclusive, sempre discute com a amiga natureba que não vê razão para ela se flagelar, mastigando feito um camelo o mínimo pedaço de folha.
O pior de tudo é que ela proíbe os filhos de comerem chocolate, mascar chicletes, chupar pirulito. Isto é crime inafiançável, defende, e ainda acusa a colega de enfraquecer o sistema de defesa do organismo dos pirralhos. Silva diz que as crianças vivem doentes, amareladas, ilhadas entre amiguinhos rosados criados a hambúrgueres. Por causa disso, a amiga verde de raiva, já passou um semestre sem lhe dirigir a palavra. Volta sempre atrás, em nome da antiga amizade, reivindicada pelo Silva em inúmeras palhaçadas.
O relógio marca doze e quarenta. O digital barato é presente que ganhou de Guta, no último aniversário. Silva jura que foi indireta para que nunca esquecesse o dia de pagar a pensão de Amália.
Chega à agência e recebe com desinteresse os recados da secretária: Pedrão ligou três vezes, pede que retorne ligação, Guta também, etc, etc. Silva pára, olha para o teto e pensa: o que poderia o Negrão querer tão sedo em uma segunda-feira. No mínimo contar que faturou a Galega de novo.
Passa mudo e surdo pela moçada da criação, dividida em baias copiadas dos escritórios americanos. Fileiras de computadores estampam gráficos de consumo, artes de cartazes e anúncios de revista. Um garoto magrelo e alto cruza com ele, apressado, carregando uma montanha de fitas de vídeo.
Silva não percebe o clima pesado. Senta, jogando a fadiga do corpo na cadeira. Tenta ligar o computador que, para variar, trava e não abre. Reset. Na tela escura busca iluminar os fatos da noite passada com a Galega. O computador resolve trabalhar. Começa a rever as prioridades do dia.
Gorducho, redator e amigo de Silva, como faz todas as segundas, acompanha aquela chegada com seu típico olhar sombrio. A princípio normal, porque o jovem Gorducho vive mergulhado na Segunda Geração do Romantismo, o Mal do Século, Fagundes Varela e cia. Eternamente de preto, parece uma bola oito de jogo de sinuca. O ar de mofo completa o tipo que ele assume para divertir-se com a reação dos amigos. Até para tomar chope o Gorducho faz ritual, louvando o pessimismo. Levanta a tulipa contra a luz e sempre, antes do primeiro gole, recita Augusto dos Anjos com a voz empostada e as sobrancelhas arqueadas: “O beijo, amigo, é a véspera do escarro...”
Passar por discípulo de Byron e outros da lúgubre Escola deleita o gordo redator. Adora também escutar as aventuras amorosas do Silva. Excita-se com o rosário sexual do amigo, o que desperta no pessoal da agência a desconfiança de que ainda é virgem. É do tipo que defende a tese de que sexo só com amor. Silva afirma que isso é atestado de idiotice.
Com andar pesado e lento Gorducho caminha ao redor do amigo Silva, aquilatando as palavras que vai usar para comunicar a morte do Bob. Sabe muito bem que o dia é o pior para se falar qualquer coisa com o Silva.
- Onde você se ocultou, criatura da noite?
- Qual é, Gorducho, tomou chá de radar pra ficar me seguindo, é ? Já deixei muita mulher por causa disso. E hoje é segunda, então dá um tempo, que me atrasei pra burro. Viu que belo briefing o Bob deixou sexta-feira pra gente ?
- Vi, mas...
- Como sempre não diz nada, a gente é que tem que se lascar pra saber o que o cliente realmente quer: “vamos criar uma campanha pra cima, empolgante e vendedora”. Putz, é um tratado ao óbvio.
- Você não sabe de nada ?
- Sei. Sei que estamos ferrados pra entregar essa campanha nova a tempo.
Silva levanta suando frio e vai para a copa, tomar mais dois antiácidos. Quer explodir, não só pela ressaca, mas pela pressão do trabalho. Carrega a agência nas costas e o Bob posava de publicitário do ano. Jurava que um dia cuspiria naquela vida de merda, montaria a banda de blues que sonhava e se afogaria em mulheres e bourbon. Ou casaria de novo com a Guta...
A lembrança do bourbon e da ex-esposa enche sua boca de saliva. Bota a garrafa com água na mesa segurando-a pelo gargalo, como fazem os bebuns. Senta, ofegante, e passa o copo gelado na testa. O pensamento, longe, retorna quando Gorducho senta junto dele, puxando a rédea da conversa. Silva nem imagina que algo pior que sua ressaca está por vir...
- Ontem, o dia todo, zanzamos pela cidade lhe procurando. Por que não compra um celular?
- Detesto. É igual a coleira. Que foi, o Bob anda fazendo hora extra sem me avisar? Qual é a reclamação do dia ?
- Você não leu os jornais, cara?
- Detesto jornal na segunda-feira, fico enjoado. E principalmente hoje tenho uma grande razão para não me ligar em nada.
As grandes pernas da galega se abrem na memória do Silva.
- Pois devia. O Bob morreu, cara.
O ruído da impressora na sala ao lado cresce com o silêncio que domina a copa da agência.
- Tingiu de rubro os ladrilhos da calçada suja.
- Vai sacanear outro. Que história, Gorducho?
O gordo amigo pega o jornal na ponta da mesa e mostra a foto do corpo, esparramado na calçada. Silva estarrece. Enche o copo com água gelada mais uma vez, e toma de um só gole, com o olhar fixo no jornal. O copo gelado desliza de um lado para outro sobre testa larga. Encara a matéria.
Enquanto lê, Gorducho tenta explicar. Com um gesto rápido e corriqueiro, Silva belisca as bochechas do amigo, cortando o papo. Lê e relê, não acreditando no que as páginas sujas , que passaram por muitas mãos, informam com imparcialidade jornalística.
- Foi por isso que lhe procurei ontem. Onde você se meteu, cara?
- Na Galega.
- Não escutei direito. A Galega? Que Galega?
- Comi a Galega.
- O Bob morreu e você vem me contar aventuras sexuais?
- A Galega... A Elga!
- Dona Elga? A escudeira do grupo Beter? Essa não cola, aquele soldado do capitalismo é assexuado.
- Ela mesma. Assexuado é o senhor.
- Mas ela estava no enterro.
- Só se foi depois de trepar comigo.
- Não cara, você tá viajando. Tudo bem que faça piada de tudo na vida, mas não é o melhor momento agora. Não tá a fim de conversar, ficou chocado, tudo bem. Depois a gente se fala.
Gorducho sai impaciente. Silva fica suando imóvel. A náusea volta e quase não dá tempo de chegar ao banheiro e vomitar. Enquanto a água desce em espiral pelo vaso sanitário, sua cabeça roda. Custa a acreditar no que estava acontecendo. O mundo escorreu pelo esgoto. E aquelas pernas, o girassol, voltam à sua mente. Gorducho bate à porta.
- Tem gente, merda.
- Silva, Silva?
- Que foi agora, Mal do Século?
- Telefone.
- Diz que não cheguei, desci pelo vaso, inventa qualquer coisa.
- Já disse que você está.
- Quer me lascar, mesmo.
- É a Guta.
- Putz...
Silva cospe na pia. Lava o rosto e fita o reflexo molhado no espelho. Procura a toalha, não acha. Papel higiênico, muito menos. Definitivamente segunda-feira é o reinado do caos. Com a cara molhada atende o telefone. Antes, respira fundo e fecha a guarda, esperando que Guta lhe enfiasse uma porrada telefônica.
- Oi.
- Desculpa não faz mal a ninguém, meu bem.
- Tá certo, Guta, desculpa, mais uma vez desculpa, é que...
- Mania de perseguição, é ? Tô me desculpando, por sábado.
- Quê?
- Sábado, cheguei ao bar muito tarde, e você já tinha saído. O garçom me disse.
- É... Claro, não ia ficar plantado a noite inteira lhe esperando.
- Também não precisa engrossar. Vamos conversar hoje à noite?
- Hoje não dá. A agência está um caos e eu idem. Amanhã, que tal?
- Vi o Bob no jornal. Pode ser amanhã. Você viu que foto?
- Tardiamente, feito um corno. Todos viram antes de mim.
- Que mau humor, heim? Tudo bem. Mesma hora, mesmo canto?
- Certo.


CAPÍTULO 5 - Afogado em vinho - (Sunshine of love -The Cream)
Quando viu Pedrão aos beijos com Guta, Silva sentiu um zepelim de chumbo cair sobre sua cabeça. Desde o primeiro dia de aula, quando entraram juntos na faculdade e na mesma turma, que Silva só tinha olhos, mente e corpo para idolatrar aquela magrelinha com cara de intelectual. O cabelo castanho claro todo encaracolado lhe fascinava. Pena que ainda era um pré-Silva, tímido e sonhador. Destes que o rolo compressor da vida adora esmagar.
Enquanto agia como um José de Alencar, Pedrão, atacava de Aloísio Azevedo: cru e direto. Conversa não faltava. E esperteza. Citava os surrealistas franceses, recitando Benjamin Perret e os elefantes da paixão. Da Ideologia Alemã descambava para Omar Khaiam. “Bebas vinho !”, bradava Pedrão nas mesas de bar, sempre olhando em volta para ver que efeito sua encenação provocava. Principalmente nas mulheres. Especificamente em Guta, a bola da vez.
O black power esmagou o revolucionário. Pedrão transou com Guta primeiro que o Silva. Não que houvesse uma disputa aberta. Até porque os princípios libertários do Silva o impediriam de qualquer ação deste tipo: machista, fruto do capitalismo que transforma seres humanos em reles mercadoria, como bem definiam os livros devorados por ele. Silva arrumava sempre uma boa desculpa para não azarar a Guta. A história não o absolveu. Nem ele ao Negrão.
Seus olhos úmidos seguiram Pedrão e Guta saindo de fininho do Ecológico, o point da época - mesmo que ninguém usasse este anglicismo nos finais de 70. O bar era um templo, muito mais que os de hoje em dia, Silva e Pedrão garantem. Cercado por fruteiras de copas imensas, vizinho do coreto da Praça da Preguiça, em Olinda.
A barra do dia já riscava o horizonte de alaranjado. No bar, o empulhado Silva via Pedrão e Guta subirem para a Igreja do Carmo, isolada no cume de um morrinho, no canto da praça, com pouca luz em volta. Subiam abraçados, aumentando a vertigem do Silva. Na lateral da igreja o pé de fruta-pão projetava-se em grande sombra.
- Beba, vinho! Silva gritou, tal qual fazia Pedrão, só que agora soava como um antídoto para aquele momento de dor. Fez um psiu e pediu o tinto vagabundo que era servido no boteco. O vinho barato e não muito gelado veio à mesa. Ele bebeu com a sede dos traídos. Não entendia por que a Guta fizera aquilo. Sempre metida a intelectual, passavam horas conversando sobre semiótica, Marcuse, Rosa de Luxemburgo. Era a gata dos seus sonhos. E o Pedrão com aquele jeitão de conquistador barato não combinava com ela. Deduzia o Silva sob a névoa da embriagues. Não levando em consideração que a Guta dançava com Pedrão em todas as festas. Formavam invejável dupla de dançarinos.
Festinhas cultivam desejos. Entre ritmos, sons e corpos apertados, o que era a princípio raso, entre Pedrão e Guta, transbordou. Até porque ela tinha decidido que já estava na hora de transar, antes que ficasse para titia. Não sabia com quem. O Silva? Não, eram muito amigos e, além do mais, nunca se tocou com suas insinuações. Nem quando foi estudar na casa dele de saia curtinha e camiseta branca sem sutiã. Queria provocar mesmo, criar uma situação onde os dois se vissem atraídos. E nada. Não, o Silva não. Talvez um dia, quem sabe?
Sem tirar os olhos do copo, mesmo depois do quinto, Silva resmungava sozinho, recitando:
- “Bebo porque no fundo do copo vejo a imagem da mulher amada. Beba vinho.”
O destino lhe sorri sarcasticamente. Pedrão não tinha nenhum livro de poesia, achava literatura um saco Com memória de mamute, folheava as edições raras que o Silva guardava enciumado, decorava os trechos que, a qualquer momento, eram usados como isca para gatas.
Está escrito em alguma traseira de caminhão que Deus protege as crianças e os bêbados. Naquela noite o Senhor deve ter sentido compaixão por aquele ébrio solitário. Um amigo, que nem o próprio Silva lembra mais quem foi, recolheu em sua Brasília velha o que sobrou daquele romântico. Com a consciência afogada no vinho de terceira categoria, Silva só conseguia identificar a guitarra de Eric Clapton, que no Rodstar da Brasília tocava Sunshine of love.
Muitas ressacas se passaram. Com elas Silva aprendeu que o tempo passa, levando consigo parte do ranço das existências, deixando na paisagem da vida lembranças que às vezes pulam em nosso colo. Anos depois do porre de vinho, Silva encontrou uma coletânea do Cream, banda inglesa dos 60, quando garimpava promoções em uma loja de discos. Sunhine of love, dedilhada por Eric Clapton, já não machucava tanto. E o vinho que comprava com o salário de diretor de criação era de melhor qualidade. Só os problemas com a Guta permaneciam.
- Bebas vinho!


Capítulo 6 - No Scoth Bar - (Bad Wiskey, Buddy Guy e Junior Wells)
Scotch Bar, na antiga zona de prostituição, no Bairro do Recife, perto do porto. Nas proximidades, históricos prédios em restauração, resquícios dos inesquecíveis puteiros: Chantecler, Black Tie, Baiana e mais uma infinidade daquelas casas, onde o sexo fazia a noite ferver, tornando mais leve o peso do dia-a-dia dos estivadores; e a vida dos jovens de classe média mais excitante.
O Scoth Bar ainda deve ter umas seis mesas de madeira escura pelo tempo, cobertas por toalhas de xadrez vermelho. Balcão ensebado. São Jorge na parede em luta permanente contra o dragão. Banheiro apertado e quente. Mas o Whisky é de primeira, importado, garantem os donos. Pedrão todo fim de mês quando recebe o salário bate o ponto por lá. Toma umas, sempre acompanhado por um pratinho de queijo de coalho com molho inglês. Adora o boteco. O que não gosta muito é quando o lugar fica cheio de político. Bebem o dinheiro do povo, resmunga.
Pedrão toma a última, paga, belisca mais um pedacinho do queijo. No banheiro abafado mija, mirando as bolinhas de naftalina como se jogasse bilhar urinário. Volta suado com palito entre os dentes, cantarolando uma canção de Buddy Guy.
O blues entra em sua vida por causa da amizade com o Silva, pelas veias cúmplices da paixão que nutrem pelo universo musical. Negrão é mais eclético, o que o empurrou para a cena mangue recifense. Sempre um bom papo, faz amigos com a naturalidade de moleque, que trás da época em que jogava bola nos campos lamacentos de Olinda. Convive com a diversidade sonora que vai do Lamento Negro, grupo de música afro que deixou marcas no Mangue Beat, até as bandas hard core, punk e grupos de hip hop do Alto José do Pinho.
O tesão do Silva é o blues e seu filho mais rebelde, o rock and roll. Pelo menos uma vez por semana, ele e o Negrão guardam as diferenças que a vida talhou em seus perfis, nas profundezas do grande baú de prata onde trancamos a intolerância. Celebram a famosa noite Bourbon street. Bom motivo para conhecerem mais umas gatas. O clima é perfeito com Jack Daniel rolando e um fuminho enrolado, rodando.
Noites memoráveis marcadas por acordes de guitarras, roucas vozes do Sul dos Estados Unidos, solos de harmônicas e muita, muita conversa fiada. Desfilam Sonny Boy Williamson, Muddy Waters, Bonnie Lee, Robert Jhonson e tudo mais que possa ser ingerido dignamente com Bourbon.
Pedrão empurra a portinha do bar com a barriga e segue pelas ruas de paralelepípedos molhados pela chuva, que refletem a luz da cidade, exalando um frescor boêmio. O colorido do casario antigo do Bairro do Recife emoldura a proximidade da madrugada. Pedrão entra no beco escuro, que liga a Rua do Scoth Bar à da Moeda, para ir pegar o carro, o velho Fiat 147. Caminha distraído, assobiando Summertime, quando uma cabeleira loira, em carrão importado, rasga o úmido silêncio da noite, chamando sua atenção. O carro cruza a rua devagar e pára logo à frente, na esquina com a Rua da Guia, famosa pelas putas de antigamente que cobravam barato por instantes de prazer. De outro carro, Negrão vê sair o Bob que se dirige ao outro automóvel.
Quando a luz interior do carrão acende, Pedrão saca o que poderia render a grande matéria do mês: Elga Beter e Bob Maya escondidinhos, furtivamente, trocando de carro no meio da madrugada. Os dois se dirigem a um terceiro veículo, parado mais adiante. Saem discretamente. Alguém desatento acharia normal. Não o Negrão. Engrena a primeira no Fiat, e os segue. Descem à direita pela ponte de Limoeiro, no sentido de Olinda, deixando para trás o Recife iluminado, com seus reflexos boiando no rio Capibaribe.
Pedrão fica à distância para não dar na vista. Os carros transitam por estradas escuras, cheias de motéis. Love Star é o escolhido pelo furtivo casal. Negrão enrola uma de suas tranças rastafari e fica matutando: aquilo tudo renderia uma boa matéria, sensacionalista, porém rentável. O suposto afair do Bob com a mulher do Beter, milionário, rei do açúcar e de tantas outras coisas, pode garantir grandes noitadas no Scoth Bar.
Na manhã seguinte, após a noite mal dormida de tanta ansiedade, Pedrão chega à redação do jornal, onde trabalha há uns cinco anos. Com a cara séria e o olhar faiscando vai direto à sala do editor, também dono do jornal, de uma produtora de vídeo, de uma emissora de televisão e muitos negócios. A cara do sujeito fica branca com o relato do Negrão, que acha exagerada a atitude do chefe. Era um furo, sem dúvida, só que escândalos da burguesia não deveriam despertar tamanha importância em jornalista calejado.
O velho coça a barba que o assemelha ao presidente Lincoln. A boca gesticula, indecifrável. Levanta bruscamente e abraça o subalterno, dando-lhe tapinhas nas costas, felicitando-o pelo faro jornalístico. Desconfiado com tanta nove - horas, Pedrão sorri amarelo. O velho caminha reflexivo em volta do atônito interlocutor e arria o corpo na cadeira, pesado e flácido, saldo de muitos anos de vida mansa. Risca diversas setas no bloquinho de anotações, procurando milimetricamente entre elas o que deve dizer.
- Essa vai ser dinamite pura, meu jovem.
- Hoje mesmo, chefe, volto ao motel para levantar mais informações.
- Isso mesmo. Um momento...calma, jovem, contenha a ansiedade. Faz mal ao coração. Cuidado. Não conte nada a ninguém. Afinal são grandes figuras da sociedade. Precisamos avaliar bem a situação para que não escorreguemos em precipitações que, amanhã ou depois, possam nos custar muito caro.
- Velho frouxo.
- O que foi, meu jovem? Não ouvi direito.
- O senhor tem toda razão.
- Sempre, meu jovem, sempre. Aguarde minha orientação. A imaturidade induz, a experiência conduz. Por falar em experiência, conto com a sua para realizar uma grande matéria no interior do Estado, sobre a violência nas estradas. Existe uma quadrilha agindo do Agreste ao Sertão. Mando a pauta pelo motorista amanhã, bem cedo, quando você viaja com esta hercúlea tarefa. Boa sorte.
Irado, Pedrão retira-se mudo e enojado. Os anos de janela na imprensa lhe dizem que o dono do jornal quer afastá-lo da matéria sobre Elga e Bob. Só não sabe o porquê. Desce a escadaria secular, clamando pelos mártires da imprensa, xingando o chefe. Desconfia que não rolaria porra nenhuma de matéria.
Pedrão, enquanto adoça o café expresso que bebe diariamente na Avenida Guararapes, no centro da cidade, resolve driblar as ordens que recebera e mandar um jornalista free lancer em seu lugar. Nada o afastaria daquele caso. Principalmente depois da atitude da Raposa dissimulada. Ao sair, levando na pele cheiro de café torrado, cospe a saliva grossa atrás da banca de revista que, dia após dia, exala o ácido odor de mijo. Lembra-se de passar no banco e tirar uns trocados para calar a boca do motorista escalado para a viagem ao interior.
A sórdida Raposa mal espera o Negrão virar as costas: liga para o Bob. A voz mansa e pausada do jornalista o assusta, revelando a descoberta de Pedrão. Bob pinga de suor.
- Mas, mas, mas e agora, e agora. Merda!
- Calma, Bob, calma que eu mesmo ligo para a Elga e a gente encontra uma solução.
- Estamos perdidos, fodidos.
-Tudo se ajeita, deixa de ser frouxo, homem.
-Frouxo nada. Fica dando mole para este teu jornalistazinho de merda, pra ver se ele não acaba lascando todo mundo.
- No stress. Relaxe. O desespero é o pai da inconseqüência; e você acaba se entregando, como quase aconteceu daquela vez que o velho Beter pediu para conferir o plano de mídia e os custos da veiculação.
- Assim não dá. Vai jogar isso na minha cara a vida toda, é? Se você e Elga não fossem tão gananciosos, o Beter não desconfiaria de porra nenhuma.
- Diga isso a Elga. Ela vai adorar saber o que pensas sobre o seu caráter.
- Não provoca, que sei muito bem que você se caga de medo da sua chefinha.
- Vá se...
O telefone fica mudo. Bob corta a discussão. Põe o braço sobre a mesa para apoiar a testa suada e chora de raiva e de medo. Desespera-se ao menor sinal de perigo, o que rotineiramente desperta em Elga ódio e repulsa.
O conluio entre os três está cada dia pior. Os outros dois concordam que por causa do comparsa molóide podem perder tudo se a pressão subir muito. Não vão permitir que isto aconteça, estragando o plano perfeito que tinham bolado, superfaturando o valor das veiculações e das produções dos comerciais, pagas pelo Beter ao jornal e à produtora da Raposa Velha.
O Beter só desembolsa, quem confere tudo é a mulher dele, a Elga, que gerencia os negócios desde que o marido se aposentou, diga-se de passagem, por insistência dela.
Tanto fez que ele largou tudo, convencido de que não tinha mais idade e nem saúde para enfrentar o estresse do dia-a-dia das empresas. Beter nunca desconfiou de nada, porque era apaixonado pela mulher. A não ser quando aumentaram muito os custos de um semestre para outro, dobrando os lucros da quadrilha. Bob foi contra, movido pelo medo e não por nenhum rompante de crise de consciência. Elga levou o plano à frente. Mostrou aos dois sócios quem realmente mandava, controlando-os com mão-de-ferro.
A Galega, trinta anos mais jovem que o marido, quer garantir de forma escusa uma herança mais gorda, além da que dividirá com os quatro filhos do primeiro casamento do velho, quando ele ficar sob sete palmos de terra. Ela não aceita que eles gastem dinheiro pelo mundo afora, enquanto suporta o Beter, sendo obrigada a retribuir carinhos e a tratá-lo com seu amor dissimulado. Nem toda riqueza do mundo pagaria as vezes que ainda teria de ir para cama com o velho, sentindo asco, rezando para que a morte lhe aliviasse o fardo.
Há alguns anos a Galega, o Bob e a Velha Raposa enchem os bolsos de grana, o que ameniza o pânico do frouxo publicitário.
Até que certo dia, alertado pelo contador, o Beter resolve conferir os negócios tocados pela mulher. Só que, mais uma vez, deixa-se iludir pelo poder de sedução da Galega e pela desculpa esfarrapada de que o número de leitores havia crescido muito, assim como os custos de produção. Elga espertamente o convence de que, se por um lado aumentaram os investimentos, ampliou-se ainda mais a projeção das empresas. Ela sabe como ninguém massagear o ego de um velho vaidoso e carente. E ainda tinha como argumento a recessiva política econômica devorando o mercado . Culpa do governo, claro. O Beter sorri, satisfeito com o empenho e o senso empresarial da esposa e, mais ainda, porque passa a mão entre aquelas pernas douradas enquanto conversam. A paixão e a vaidade o dominam.
Logo em seguida à ligação para Bob, a Raposa Velha telefona para Elga, contando a história do Pedrão. Com aquela voz sensual, Elga o aconselha a não tomar nenhuma atitude impensada. Fosse enrolando o empregado, ganhando tempo sem publicar a matéria, que ela tomaria as devidas providências. Ele, orgulhoso, tranqüiliza a chefe, informando que o despachou para o interior do Estado.
- Muito bem. Preciso de um retrato deste indivíduo.
- Vai fazer catimbó, minha doce sócia.
- Você não tem graça de jeito nenhum. Poupe-me de suas piadas idiotas e providencie o retrato hoje mesmo. Contrato dois pistoleiros de minha confiança e o caminho fica limpo. O jornalistazinho vai dormir no fundo de algum mangue, assim que retornar da viagem.
- Assim já é demais, assassinato não fazia parte dos meus planos.
- Pouco me interessam seus planos. Ficou frouxo, igual ao Bob? Estou muito bem assessorada com vocês dois. Maricas.
- O Bob ficou desesperado.
- Faça-me o favor de não sussurrar igual àquele babaca. O desespero dele não é novidade. Estou farta de confusões. Com ele me entendo também. Vamos nos encontrar no lugar de sempre, para acertarmos tudo. Não atrase.



Capítulo 7 - Bilhete para Marrocos (As Time Goes By)
A madrugada espalha a brisa fresca pela cidade. Bichas, putas, boêmios e guardas-noturnos desempenham seus papéis no roteiro da noite. No aeroporto dos Guararapes, a cinqüentona bem conservada aguarda a hora do embarque, ladeada por duas meninas sonolentas.
Silva manobra o carro no estacionamento. Há um certo ar confiante na cara daquele sujeito, mesmo perto das três da manhã. Aviões chegam e decolam, chamando a atenção, fazendo seu pensamento voar.
No bar, Gorducho em momento de rara euforia ergue um brinde atrás do outro. Ninguém agüenta mais o tira-gosto que ele empurra em todos: os versos de Augusto dos Anjos. Não que sejam avessos ao poeta paraibano, mas porque já estão de saco cheio das declamações do Gorducho que, bêbado, mistura os versos de vários poemas e os repete à exaustão. A cada verso ele encara a platéia com orgulho embriagado. Coisas de quem já está com o pote cheio de birita. O boteco à beira mar, em Olinda, fica pequeno com o pessoal da agência comemorando a ascensão do Silva à direção da empresa. E mais: sócio.
- “Recife, ponte Buarque de Macedo, assistes ao enterro da tua última quimera”.
- Gorducho, os versos são de poemas diferentes, meu filho.
- Discurso, discurso, discurso! Brada o coro para interromper o recital etílico, forçando o Silva a discursar constrangidamente.
- Bem... Àqueles que me odeiam, digo que odiarão cada vez mais. Àqueles que me amam, digo que detesto puxa-saco.
Todos sorriem. Todos? Quase. Silva não consegue achar graça nas próprias piadas. Sente falta do grande amigo, que há dias não encontra. O Pedrão tomou chá-de-sumiço. E mesmo com os recados que deixou em vários lugares, Silva não consegue dar as boas novas ao amigo e nem convidá-lo para aquela bebemoração.
A amizade destes velhos companheiros é forte e presente, apesar da distância provocada pela prisão que a liberdade individual de cada um empunha. Cada qual na sua rotina, com amigos distintos e vidas em rumos diferentes. Mesmo assim, toda vez que um precisa do outro basta ligar, dar um toque apenas, para ser recebido com a força da sincera amizade que o tempo não desmoronou. Feito ruínas corroídas da antiguidade, que continuam firmes e sustentam em nossa memória o que houve de belo no passado.
Silva chega a acreditar que Pedrão e a Galega andam de caso e que os dois teriam viajado. Sabe-se lá. A Galega também não aparece, mal liga para saber dos negócios com a agência, fugindo do seu estilo, de marcar na pressão. Será que confia mais nele que no Bob?
A falta do amigo é compensada pela beleza das mulheres, que Silva bebe a cada gole de Bourbon. A nova estagiária impregna sua imaginação com fantasias mirabolantes. Deve ter uns quinze anos a menos que ele, o que é mais excitante. Gorducho reconhece aquele olhar de abate, tão comum ao Silva. Fica se roendo de ciúme. Anda louco por aquela loirinha do cabelo raspado. Perde o sono, atarantado pela pequena e sedutora serpente sinuosamente disposta entre o ombro e o pescoço da ninfeta. A corrosão da ciumeira diminui quando Gorducho vê que Silva também não tira o olho de uma modelo, muito perua, que ninguém sabe quem a convidou.
Silva toma um trago e a imagem de Guta lhe aparece, como uma consciência de saias. Parte para o banheiro cambaleando. Ao sair esbarra em uma morena. Era a mesma que sentou atrás de sua cadeira, tirando-lhe o fôlego. Leão à solta. Basta só definir qual delas será a presa. O relógio o faz lembrar do compromisso que ainda tem que cumprir mais tarde, com a viúva do Bob.
A chuva é fina, cabulosa. A quase careca do Silva reflete as luzes do aeroporto, enquanto sai do estacionamento para a entrada principal, onde se avista, ao fundo, os guichês com pouco movimento. Enxuga a calva, ajeita o rabo de cavalo e bota uma pastilhinha de menta na boca, para camuflar o hálito de bebum. A cinqüentona ampara as duas meninas em seus ombros. O sono pesa em seus olhos, aumentando a impaciência da espera. E aquela é a pior de sua vida , porque além de solitária marca seu regresso à casa dos pais. Deve estar, de certa maneira, acostumada a viver só. Odiava o folclore do mundo publicitário que cercava o marido falecido. Execrava aquelas caras e bocas produzidas, o que a seus olhos pareciam pura falsidade.
Foi duro ter perdido o marido daquele jeito, morto no meio da rua feito um ninguém. Pensava que na rua só morriam indigentes e bandidos. O Bob juntara-se a esta horda de defuntos. Uma lágrima rompe a armadura que aprendeu a externar para se proteger deste país estranho, quente e pobre, distante de seus familiares. De agora em diante, seguirá apenas com as filhas, e longe do Brasil.
- Silêncio, massa ignara, que declamarei para seu deleite, e para nosso novo comandante, um pequeno porém afetuoso verso que rabisquei neste guardanapo.
- Gorducho, você já tomou todas. O guardanapo está dissolvendo, duvido que saia algo que preste destas embriagadas e borradas linhas.
- Amigo garçom, não vá além das cervejas. Escuta. Grande Silva, todos sabem o mulherengo de primeira que você é. Mas eu, somente eu, sei que o seu coração solitário aguarda calado a volta de uma grande paixão.
- Dá um tempo Gorducho é hora de curtir, todo mundo quer mais é tomar uma.
Gorducho fica indiferente ao apelo do amigo, enquanto contempla com apenas um dos olhos aberto o copo de cerveja. Silva tenta em vão que o corpulento poeta desista. Não quer que a encenação se prolongue. Planeja sair dali muito bem acompanhado e aquele papo de mulherengo afasta qualquer mulher. Se bem que umas acham sedutora aquela fama de Dom Juan. Silva confirma em inúmeras de suas teses de conquistador.
Gorducho é tomado pela persistência dos ébrios e dramatiza o texto com exagerado tom grave de voz.
- Sábio escultor da gramática publicitária, não há nada melhor que comemorarmos em verso e prosa essa nova fase de sua existência.
- Tá bom, tá certo. Manda!
Gorducho balança o papel molhado com o braço erguido, como quem segura uma espada. Aproxima-o do rosto, pois não consegue ler direito o que escreveu e, finalmente, declama.
- Se existe algo pior que a solidão dos garçons, estas criaturas da noite que nos servem com resignação, é a solidão não remunerada, não reconhecida e vagabunda: a solidão dos apaixonados.
- Valeu Gorducho, muito bem.
A platéia, aliviada, aplaude e vibra em coro, pondo fim ao recital do Gorducho, ávida pelo que mais interessa. A cerveja.
A noite avança. O vento, antes morno, esfria. É o prenúncio de chuva de verão. A chuva dos cajus. Silva dá uma esticada até o bar mais próximo para comprar cigarros. Quando retorna, quase todos já foram. A exceção do Gorducho, agarrado aos beijos com a estagiária, a Soninha.
O caçador perdeu muito tempo indeciso, conclui Silva. Segue pela orla, cruzando com algumas putas mal tratadas pelo passar dos anos. Que situação: terminar a noite no zero a zero.
Em sua memória é sintonizado um daqueles documentários sobre o mundo animal. Em plano geral, a leoa excitada, em meio a uma manada de zebras que fogem da savana em chamas. Detalhe das zebras correndo atônitas, sem direção. Igual ao Silva, a leoa é movida pela facilidade de abocanhar a presa. Plano médio da leoa saltando sobre uma das zebras. Detalhe de uma mordida na garganta do animal indefeso. Plano geral do frenesi da manada que distrai a leoa. Panorâmica acompanha a leoa que larga a vítima, atraída pela possibilidade de abater mais e mais, para saciar a sede de predadora. A câmera volta à primeira vítima, que não morreu. Recuperando o fôlego, o bicho se manda trôpego. Detalhe da leoa indecisa, não conseguindo mais nada, a não ser poeira no focinho.
Close na cara de Silva. A areia da praia, levada pelo vento, pontilha sua face em pequenos beliscões. Limpa o rosto, ainda com o urro desesperado da leoa na lembrança. Acha-se igual ao ganancioso felino, indo com muita sede ao pote, restando-lhe o pó das frustrações e a solidão como companhias.
O homem gordo de cara avermelhada reclama antipaticamente com a mulher, acordando Silva dos devaneios, antes de entrar no aeroporto. A porta abre, deixando-o com a mão perdida, enganada pela automação. Espera encontrar logo o rosto familiar que lhe aguarda. No final das cadeiras de espera, a viúva cinquentona. Silva anda rápido, mas logo reduz o passo, querendo aparentar sobriedade e não dar na vista que a farra em Olinda afetou as pernas.
As filhas acomodadas uma ao lado da outra minimizam o cansaço da mãe. A maior ajeita a pequena no colo. A cinquentona recebe Silva aliviada. Talvez ficasse com ela até a hora do vôo. Quem sabe? Tomando todo o cuidado, Silva estende a mão para cumprimentá-la. Ela retribui, mas deixa o bilhete de embarque cair no chão. Arriscando se descompor, Silva abaixa-se medindo cada movimento e agarra o bilhete com discrição, sentido- o entre os dedos como um troféu ao seu equilíbrio frágil. Destino da sócia: Marrocos.
-Senhora Maya, desculpe-me pela demora. Fui obrigado a ficar na agência até mais tarde, afinal hoje é sexta-feira, dia de fechamento dos anúncios. Uma loucura.
- Não foi nada, estou acostumando a ficar só com as meninas. Daqui para frente somos só nós três e meus pais. E a documentação, o novo contrato social, ficou pronta?
- Esta aqui, pode conferir.
A senhora Maya lê com atenção, mesmo com o adiantar das horas. Confere todas as cláusulas.
- Ok, senhor Silva. Espero que cuide bem de tudo. Meu advogado vai procurá-lo mensalmente para checar os negócios e cuidar de receber meu pró-labore.
- Não se preocupe.
- Estou tranqüila. Meu marido o estimava, além de considerá-lo um grande criativo. Conversou muito comigo sobre sua entrada na sociedade. Gostava muito do senhor. Por isso realizo este último desejo do Dagoberto: fazê-lo sócio. Bem, já está na hora. Até breve.
- Acompanho vocês até o embarque.
Silva ajuda à senhora Maya com as poucas bagagens de mão. Satisfeito e orgulhoso, chega a sentir uma pontinha de constrangimento com o tamanho de sua felicidade, comparado ao pesar das três viajantes. É a espiral da vida, com seu inexplicável fluxo e refluxo, que movimenta tudo e todos. Conforma-se. Despedem-se com firme aperto de mão
Mãos brancas passeiam pelas teclas do piano de calda longa. Silva entorna outro Bourbon. Saboreia o forte drinque e se fortalece, degustando a nova etapa de sua vida. Brinca com os pequenos copos, desenhando com eles a inicial do seu nome no balcão escuro. Acredita que as coisas começam a entrar nos eixos.
O último trago o faz recordar das palavras da senhora Maya. Como é que o Bob nutria aquela admiração por ele e nunca expressou nada? Será que para ser dono também terá que bancar o babaca superior? Certo tipo de gente busca o isolamento, em uma espécie de Olimpo interior, de onde mira a todos com indiferença, não se envolvendo com os mortais. Alguns buscam segurança neste abrigo existencial, outros simplesmente querem dominar pelo temor, pela força dos gestos medidos e das palavras precisas e econômicas. O difícil é saber exatamente qual dos dois tipos era realmente o Bob. A mente embriagada tecia o turvo painel das reflexões.
O piano silencia. Silva estala os dedos. O pianista, sarará de uns sessenta anos, que ia fechando o instrumento, lança um olhar indagador.
- Toque mais uma vez, San, por favor.
O sarará não entende porque foi chamado de San. Muito menos o porquê daquele homem de rabo de cavalo insistir em ouvir repetidamente uma música tão antiga. As time goes by.
O novo dia começa a pintar de escarlate a linha que costura o mar ao infinito do céu. Dois antiácidos borbulham às dez horas da manhã.


Capítulo 8 - Entre quatro paredes ( Samba pa Ti, Santana)
A lua grande e amarelada clareia os morros de Olinda. Como um farol celeste guia Pedrão noite adentro. O velho Fiat, cada dia pior, com a parte elétrica danificada, mais por relaxamento do que pela idade. O Negrão há dias anda escondido, tramando como flagrar Elga Beter e o Bob no motel. O carro pára a uns cinqüenta metros, de onde se pode, furtivamente, ver a entrada e o grande luminoso piscando, jogando na escuridão o cupido de néon que atira flechas em direção ao céu.
O rádio, ligado por hábito, sem a preocupação de procurar emissora ou música específica, toca qualquer coisa. Pedrão não se importa, quer só passar o tempo. Ainda olha o relógio com esperança de encontrar a hora do Mangue Beat, programa que Renato produz e apresenta. Ficou orgulhoso, quando comemorou em uma grande farra com o amigo os três anos de batalha para manter o Mangue no ar, e ainda ser líder de audiência no horário. Negrão vibra quando Renatão, todas as noites, dá uma porrada na insensibilidade mercantilista das outras emissoras que, mesmo hoje, depois que o som do Mangue rompeu as fronteiras de Pernambuco, tentam justificar dissimuladamente que a música não tem público. E o rádio fica zumbindo à toa como única companhia de Pedrão no terreno abandonado, perto do motel.
Em baixo do banco, através de uma pequena abertura no estofado, Pedrão procura um baseado. Enfia os dedos no esconderijo canabiano, com cuidado e precisão cirúrgicos para não rasgar o back. Vasculha, apalpa, cutuca e nada. O jeito é aguardar de cara, ruminando a monotonia da noite; e se for possível resistir ao cansaço do longo dia. Adormece.
Um grande caminhão passa quebrando o silêncio da madrugada. Pedrão acorda de sobressalto. O coração dispara.
- Filho da puta! Motorista de merda.
Alguém sai do motel carregando uma velha mochila desbotada nas costas. Recompondo-se do susto Pedrão força a vista, turva pela sonolência. Quando o sujeito passa bem perto do luminoso, o cupido escarlate acende, revelando que é o porteiro, encerrando mais um dia de trabalho. Pedrão o reconhece da primeira vez que ali esteve. Tipo nem velho, nem moço. Ou melhor: daqueles velhos duros, de músculos rígidos, que aparentam ser menos idosos do que realmente são. As pernas, arqueadas. O andar, preguiçoso, arrastando os pés na poeira. O vulto de passada esquisita atravessa a rua, seguido pelo olhar do ansioso rastafari, agora mais atento do que nunca.
Negrão agradece aos céus, benzendo-se, imitando os católicos: bendito caminhoneiro! Sorrateiramente vai ao encalço do porteiro.
Destino: um boteco de teto baixo, com umas três ou quatro mesas velhas, porém arrumadas, ladeadas por tamboretes vermelhos. Na placa, mal pintada à mão, lê-se: “Estrela do Anoitecer !”. Escrito com aspas e exclamação, ganha logo a simpatia de Pedrão, que adora as peculiaridades gramaticais dos botequins. Chegou a ganhar prêmio com matéria que escreveu sobre o tema.
Negrão chega devagar, mas com segurança, dando a entender que o lugar é conhecido. A mesa vazia ao lado do funcionário do motel é tudo que deseja. Senta-se. O porteiro prepara-se para tomar aquela lapada de cana. Remexe-se na mesa, estala a língua no céu da boca. Em uma das mãos segura o copo e, na outra, fígado de bode espetado no palito. O pitéu quase entra pelas ventas, tamanha a cafungada que o porteiro dá, apreciando o aroma. Entorna o copo com estilo de profissional, sem fazer careta e depois dá uma cusparada que sibila pelo pequeno terraço, acertando a bananeira do outro lado. Enfia com avidez o tira-gosto na boca e mastiga com satisfação.
Ainda impressionado com a desenvoltura do vizinho de mesa, Pedrão decifra o cardápio riscado a giz na parede, que resume a cozinha do estabelecimento: “especialidade, bode guisado e assado: ao gosto do criente”. Se a comida for igual à gramática, mata qualquer abutre. Mas o ar satisfeito do porteiro, lambendo os beiços, encoraja Pedrão a pedir um bode guisado com pirão. A esta hora, tarde da noite, a fome fala mais alto, temperando a pior gororoba igual a gourmet cinco estrelas. Negrão também não tem frescura, come de um tudo e em qualquer buraco.
Pedrão brinca com o garfo, fazendo riscos imaginários na toalha, de olho no porteiro. Quando o prato de bode invade a mesa fumegando, Negrão não se faz de rogado e manda vir uma cana com limão para abrir os caminhos, como ele mesmo diz. O porteiro aprecia a categoria de Pedrão, deduz que seja um do seu time, amigo da cachaça e da boa conversa. Só pode ser. Com esta intimidade com o copo!
- O bo-bode daqui é b... é b... É bom demais, primeira sem segunda.
- Pois é. Vi o amigo traçando aquele figadozinho e fiquei com a boca cheia d’água. Não resisti.
- E cu... e cu... e cu’ma lapada é me... melhor do que mistura de domingo, né...cum...né cum... né cumpanheiro?
- Hum, hum.
Pedrão enche a boca de pirão apimentado e pede uma cerveja.
- Cu... Cu... Qual é a sua graça que não é da minha conta?
- Pedro, Pedrão, Negão. Depende das circunstâncias e da intimidade.
- Cham...chamo de Pedro, que sou rei...rei...reispeitadô.
- E o amigo ?
- Fe...fe...
- Fefê ?
- Feliciano. Di...di... dizia minha senhora fi...fi...fi...finada mãe que vem de feliz.
-Mora por aqui mesmo?
- Só tra... só tra... só trabalho. Sss...sss...sou porteiro ali naquele hotel de va...va...vadiagem. Nnn...nnn...num gosto, não, mas o senhor que tem je...je...je...jeito de co...co...conhecedor das coisas, sss...sss...sss...sabe que a situação tá...tá difícil, não deixa ninguém escolher nada.
- Pelo menos deve distrair, vendo o povo entrando e saindo, entrando e saindo, entrando e saindo?
- Ass...ass...assim, a...a...assim. Uns ca...ca..., uns ca...ca...cabra entra alegre e sai triste. O...o...outro chega aca...aca...acabrunhado e sa...sai se abrindo mostrando os dente.
- Tem muito tempo no trabalho?
- Ma...ma...mais de ano.
- Deve até conhecer muita gente que vem ai, não é mesmo?
- Tu...tu...tudo m...m...muito desconfiado. Tem s...s...só uma ga...ga...Galega, que vem muito ai que me dá uns trocados. De...de...deve adorar man...man...man...mangiroba, porque fo...fo...fo...foi não foi aparece.
- Entra e sai, entra e sai. Quem iria imaginar? Uma mulher?
- É mu...mu...muderno. E a ga...ga...galega f...f...f...fica sempre no mesmo quarto.
- É mesmo? Os olhos de Pedrão faiscam, enquanto chupa uma costelinha de bode, disfarçando o interesse.
- Go...gostoso esse bode?
- De mais. Vamos tomar uma nós dois, pra comemorar? Gostei do amigo.
- I...igualmente. Ga...ga...garção, duas larga!
Cruzando a cortina de retalho, divisória entre o primeiro cômodo, que parece salão de dança improvisado, e os fundos do boteco, um sujeito amarelado, dos olhos meio embaçado de catarata, traz a bebida com os dedos dentro dos copos. Beberam sem fazer careta. E depois mais algumas. Pedrão limpa o prato com um pedaço de pão dormido, que o amarelo do botequim foi buscar na própria casa, do outro lado da rua. Negrão não perde tempo e arma a jogada.
- Companheiro, daria tudo para conhecer esse tal quarto da Galega. Sabe como é? Curiosidade de jornalista.
- O...o...oxe, cu...cu...cumigo n...n...n...não tem po...po...pobrema. Vem de ta...ta...tardinha, que não tem mo...mo...movimento, seu dotô.
- Posso vir mesmo?
- No meu...meu turno mando eu.
Pedrão consegue aparelho de escuta com outro jornalista, colega de um detetive. Quando o relógio marca mais ou menos duas e meia da tarde, está na porta do quarto da Galega, no Love Star. Um calor de rachar. O ar condicionado da suíte treze o envolve. É uma bênção dos deuses. O lugar é uma espelunca: cama, geladeira e chuveiro. Pedrão anda pelo quarto. Passos silenciosos para não quebrar o clima de mistério e volúpia que ele sentiu ao entrar, junto com o ar abafado.
Fantasias eróticas raptam a atenção de Negrão. Imagina o casal, ao lado dele, transando sobre os lençóis de algodão. A cabeça de jornalista, mecanicamente, puxa-o de volta à realidade. Examina detalhadamente os armários, em baixo da cama e da pia, até o vaso sanitário. Nenhum vestígio. A mínima pista. Aborrecido, respira fundo aquele ar viciado, com forte cheiro de desinfetante. Monta a escuta e se manda. Na saída, com intimidade, cumprimenta o porteiro. Combinam de comer outro bode qualquer dia.
Noites solitárias impacientam Negrão. Agora, além do rádio desprezado, apenas a solidariedade reluzente da lua.
Pedrão sente-se atraído por aquela bola incandescente no céu. O pensamento navega. Anota reflexões no pequeno bloco que traz sempre à mão, brigando com as palavras, tentando parir um poema. Acredita que a lua acalanta, com seus braços luminosos, solidão de todos os matizes, desde que o homem surgiu na terra e, com ele, a necessidade imprescindível de estar com alguém. Uma única vez, em minutos fugazes ou no infinito efêmero das existências.
A lua tem algo de felino, um olhar de gato aceso na cara da escuridão. Sua magia ou a pura beleza que irradia magnetiza a atenção do vigilante Pedrão, arfando dentro do apertado carro branco. Um facho de luz cruza a pista, marcando a parede do motel com foco amarelado. Excitado, Negrão sente a respiração curta. É a hora. Apura os ouvidos e liga o gravador.
- Vai Carlinhos, tira logo essa cueca e pula em cima de mim, vai.
- Tá doidinho pra dar essa bundinha, né taradinho.
- Não me chama assim que fico mais louco ainda, vem, vem...
Pedrão quase quebra o pára-brisa do carro com um murro. Era só o que lhe faltava: ser platéia de um show gay depois de tanta espera. Cadê a Galega e o Bob, diabos? Mais duas noites suando dentro do pequeno Fiat e Pedrão só capta orgasmos alheios. A abstinência sexual das últimas semanas transforma a escuta em sessões de tortura, em seu cárcere sobre rodas, isolado na madrugada. Ninguém imagina quanta criatividade os amantes liberam protegidos pelo silêncio de quatro paredes! Esquecem inclusive que elas podem ter ouvidos. Certas coisas não devem ser confessadas nem às paredes, previne o velho bolero, cantado por Nelson Gonçalves no palco da memória do Negrão.
Na terceira noite, um carrão aproxima-se lentamente. Pedrão fica de orelha em pé. A porta com o número treze bate bruscamente em seus ouvidos atentos.
- Vamos logo, trouxe o que lhe pedi.
- Calma , sem estresse. Sabe que não falho nunca. Para que essa pressa, porque a gente não aproveita o momento e aprofunda um pouco nossas relações.
- Basta um velho em minha vida. Vocês cheiram a mofo. Chega de perder tempo. Passe-me o retrato daquele bisbilhoteiro de merda.
- Você é uma pedra, Elga. Está aqui, é uma foto antiga, mas a cara não mudou nada.
- Com essa expressão idiota, ele pensa em nos ameaçar?
- Não o subestime. Ele é esperto.
- Se dependesse de sua perspicácia e da coragem do meu sócio bobo, jamais botaríamos a mão em um centavo do velho Beter.
- A crueldade é diretamente proporcional a sua beleza.
- Poupe-me. Reserve suas analogias medíocres para as dondocas, as peruas da coluna social daquele folhetim barato. E este jornalistazinho, já viajou?
- Deve estar assado, lá no Sertão. Elga, se me permite, gostaria de propor outra solução para o rapaz. Acredito persuadi-lo a esquecer tudo, em troca de algum dinheiro.
- Só se for do seu bolso. Esqueça. Prefiro a garantia de um túmulo.
- Minha querida...
- Querida?
- Elga, posso transferi-lo para uma sucursal, nos confins do Estado.
- Embaixo da terra é o melhor lugar para ele. Ponto final.
Elga Beter encara com ódio o retrato do Pedrão. Lá fora a tensão e a noite quente aumentam os batimentos cardíacos do Negrão, que acha muito diferente o que para ele seria a voz do Bob. Talvez fosse a má qualidade do som, pensa irritado.
- Está com os dias contados.
- Fica charmosa quando espreme as palavras entre os dentes.
-Vou espremer a insignificância que traz entre as pernas, se continuar me despindo com os olhos.
-Bem. Já disse que estou fazendo o que posso para segurar a matéria daquele menino. Ganhando tempo.
- Menino que nada. Vai pagar a curiosidade com a vida. Ele e o molóide do Bob já esgotaram a minha paciência.
- Também vai se livrar do Bob? E eu ?
- Contenha-se, Raposa Velha. Você é muito útil. Pense bem como tudo fica mais fácil se o Bob sair do caminho.
- Aonde quer chegar?
- A idade corroeu seus neurônios, caro sócio? Se o Bob desaparece, na certa quem assume a agência é aquele publicitariozinho vulgar, o tal do Silva. A mulher do Bob é uma alienada, não liga para os negócios. E o sujeitinho, do jeito que olha para as minhas pernas, não vai ser difícil ganhá-lo para nossa causa.
- Você é terrível.
O final da conversa deixa a Raposa com inveja e ódio. Sonhava despindo a Galega, rasgando-lhe a roupa, transando na redação do jornal. Estes encontros no motel só aqueciam ainda mais o seu desejo. A rispidez da Galega, o poder contido em cada gesto, nas mínimas palavras, deixavam-no enlouquecido de tesão.
A roupa molhada de suor e o ar abafado fizeram do Fiat 147 uma sucursal do inferno. Pedrão pasma, entre o medo e a raiva, ao reconhecer a voz do chefe. Nunca pensaria que a Raposa Velha, todo metido a senhor de respeito, iria se envolver em algo tão sujo. Agora, é impelido a sumir de vez, pelo cerco que se fecha. A vontade de denunciar o ardiloso crime explode na cabeça do jornalista. É obrigação desmascarar aquela sujeirada. Mas salvar sua pele é imprescindível. Avisaria ao Silva sobre a roubalheira na agência e a possibilidade de matarem o Bob. Juntos talvez conseguissem por os bandidos na cadeia. Respira com dificuldade e a mente trabalha rápida, quando uma mão pesada bate em seu ombro.
- E vo..e vo...
- Que Ivo, porra!
- E vo... e você, fa...fazendo o que po...po... Por aqui?
- De passagem. Quando é que a gente come outro bode daquele?


Capítulo 9 - Viagem sem volta (Born to be wild - Steppenwolf)
O Agreste ficou para trás, com os campos esverdeados pelas raras chuvas de verão . O carro da reportagem corta a estrada rumo ao Sertão. Pela janela um caleidoscópio de tipos humanos e situações pitorescas quebra a monotonia das horas. Um homem esquálido e manco carrega o peso da miséria em suas costas, seguido da mulher que mantém distância respeitosa do marido. A corda de filhos faz lembrar os caranguejos do litoral, vendido nas feiras amarrados uns aos outros. O sol tinge o horizonte, espalhando pela terra seca sombras de juazeiros e de bodes que pastam o que podem encontrar naquela secura.
O carro segue, com o amigo do Negrão, o Zeca, e o motorista. A fome rosnando nas barrigas ocas logo vai obrigá-los a pararem em algum restaurante de beira de estrada. Com muita quilometragem rodada ficam em silêncio, economizando assunto. Já deixaram pelo caminho um rastro de conversas à toa.
As primeiras placas de trânsito cravejadas de bala aparecem no acostamento, despertando o corpulento jornalista, que muitos julgavam ser irmão de Pedrão, tamanha a semelhança. Zeca não pressente, como ninguém pressentiria, que assumira, junto com a reportagem, o que estava escrito no roteiro da vida de Pedrão.
- Olha as balas na placa.
- Já vi, Pirão. O que é aquilo ali, na frente?
- Carcaça de carro roubado. Não deixam nada, Zeca.
- E o pouco que fica, tocam fogo.
- Muitas mortes nessa estrada.
- A crise aumenta a violência, Pirão.
- Que nada. É pouca vergonha, mesmo. Querem ganhar dinheiro fácil.
- O, Pirão, de onde vem esse apelido.
- Toda vez que me perguntavam se eu bebia, respondia que não, como com farinha. Daí veio Pirão de cana, Zeca. Muita aguardente na vida.
- O Pedrão me disse que você é crente.
- Crente que engano os outros. Aceitei Jesus, é verdade.
- Tem que ver se Ele aceitou você.
- Brinque, não. Leio a bíblia todo santo dia. Mas ainda tomo umas, que santo eu não sou.
- Ali tem carne de sol pra vender.
- Na volta a gente dá uma paradinha aqui, pra comprar. É a melhor de Pernambuco.
Zeca concorda, prestando atenção às marcas de violência que lhe surgem. Anota em seu bloquinho detalhes para a reportagem.
- É uma boa. Também estou com fome.
- Lá na frente tem um lugarzinho bom, Zeca.
Casas de barro com paredes tortas, parecendo que vão desabar, começam a pontilhar à beira da estrada, avisando que algum vilarejo se aproxima. À esquerda, ainda muito distante, um risco de água prateia o final da tarde. É o velho São Francisco dando as boas vindas aos viajantes. Devido à distância ainda parece um riacho. Mais tarde, a dupla cansada pela jornada, descobrirá que o rio tem, em alguns trechos, magnitude oceânica.
O carro para em um pequeno restaurante cercado de caminhões. Quem vive na estrada sabe que é sinal de boa comida ou de mulherio fácil. Pela hora fica difícil arrumarem uma mesa para jantar. O garçom, solidário como todos os bons que se prezam, avisa que um grupo de caminhoneiros está de saída, e aponta o lugar, junto à porta lateral, perto do balcão de fórmica branca. Passam observando secos e molhados arrumados improvisadamente. Garrafas com mel ou manteiga, rapadura, carne de sol e queijo de coalho, cocada de jaca e doce de leite.
O calor, que torrou os viajantes durante o dia, troca de posto com o frio da noite que se aproxima. Sentam recebendo a brisa que cruza a pequena porta esverdeada. O motorista faz a ressalva que, mesmo contra seus princípios que o impedem de beber em serviço, vai pedir uma cerva gelada para tirar a poeira da garganta. Zeca aprova com sinal positivo do polegar.
Carne de sol com macaxeira e manteiga de garrafa, acompanhados por uma loira geladíssima. Corpos e mentes relaxam, fazendo com que não percebam que são observados por dois sujeitos esquisitos, que estão do lado de fora encostados em uma caminhoneta turbinada. Um com barba mal feita e barrigudo... Usa colete de couro e bota de bico fino. O outro, esquelético, mantém no rosto óculos escuros. Oculta os olhos amarelados por doença ou ruindade. É crença no sertão que bom matador tem olho amarelo, fixo, igual aos dos peixes.
Zeca paga a conta, o motorista pega um palito e seguem viagem. Ainda não é hora de dormir. Querem ganhar tempo e cruzar o Velho Chico ainda aquela noite, para encontrar a mulher de um caminhoneiro que foi morto recentemente pelos piratas do asfalto. Zeca sugere um atalho. Pirão diz que pode ser perigoso sair da estrada principal. Tem muito buraco e correm o risco de ficar cara a cara com alguma quadrilha desmanchando carro ou dando fim em gente. Atalho às vezes pode nos levar rápido demais aonde não queremos. O repórter insiste na urgência. Pirão obedece.
Os faróis riscam a noite. Pequenos insetos batem no pára-brisa. Silêncio. Apenas o barulho do motor ou um carro mais afoito, distante, não temente à insegurança que aumentava com a noite, rompem o calar da escuridão. Zeca acende um cigarro, mas não tem tempo de tragá-lo. Levam uma fechada e são jogados para o lado do rio. O carro bate em uma pedra, quase capota. Para à beira de um barranco. Lá embaixo o rio espera. Zeca com o rosto sangrando tenta em vão acordar o motorista. Atônito com o acidente esquece que os mortos não acordam. Tenta sair do carro e dá de cara com o cano de uma pistola quarenta e cinco. O tiro explode no rosto de Zeca. Os dois pistoleiros, depois de atirar no motorista para garantir o morto, mergulham o carro nas águas profundas do São Francisco.
O cara de olho amarelo acende um cigarro de palha, envolve a pistola com uma pele de bode e guarda na mochila. O embrulho vai repousar sobre a bíblia que sempre o acompanha. Dá um longo trago e saca o celular. Com a voz calma faz o relatório do serviço.
- Boa noite, madama. O negão virou comida de peixe. Serviço limpo e sem pistas, fazendo valer o investimento. Mande as ordens quando precisar, cliente antigo feito a senhora merece toda consideração. Deus lhe pague.


Capítulo 10 - Desabafo - (Maybe, Janis Joplin)
Silva troca o quadro com mandamentos publicitários citados à exaustão pelo finado Bob. No lugar, ficou o do Led Zeppelin, onde se lê: “I have dream, crazy dream”. Está feliz com a realização do velho sonho de comandar sua própria empresa. Nunca imaginou que seria esta, em que lastima adentrar toda segunda-feira. Parado em frente ao quadro, observa os quatro roqueiros. Questiona-se sobre a possibilidade de um dia ter a sua própria banda, afinal sentia-se um músico frustrado, queimando horas preciosas de sua vida a serviço da agência. Se bem que agora é o dono, a rotina de trabalho pode melhorar, sem precisar aturar o Bob. E vez por outra continuar a divertir-se com amigos, tocando nos botecos da vida, acompanhado por muito Bourbon.
Silva não entende direito porque não seguiu a carreira de músico. Vai ver que cedeu ao caminho mais fácil, seguro, com um bom emprego e a grana certa no fim do mês. O emprego garante ainda alguns pontos com a Guta porque quase não falhava com a pensão da filha, além de agregar um certo comportamento responsável à sua vida. Também não é tão ruim assim criar campanhas geniais que são jogadas no lixo por alguns clientes tapados. É estressante o dia-a-dia na empresa, ter que suar a camisa e engolir o Bob levar os méritos pelo seu trabalho. Até uma passagem para Nova Iorque, que um redator ganhou como prêmio em festival publicitário, logo quando a agência foi inaugurada, o cara se apropriou, alegando que o pobre coitado era free lancer e que o prêmio era patrimônio da empresa.
Silva não tem certeza se quer largar tudo e recomeçar, mesmo se o preço da indecisão for sua própria felicidade. Dedilha imaginariamente a guitarra de Jimmy Page no poster do Led Zeppelin, com o pensamento vagando. Gorducho bate na porta.
- Bom dia chefe!
- E a mãe tá boa, Mal do Século? Quem tem chefe é índio.
- Foi apenas um chiste.
- A última vez que vi esta palavra acho que foi em Quincas Borba, Machado de Assis. Que saco, Gorducho? Parece quem tem uma livraria dentro da boca. Vai, desembucha!
- É aquele briefing que o Bob nos deixou. Aquela ode à redundância.
Silva suspira entediado com o Gorducho e irado com o Bob, porque, nem morto, dá sossego. A vontade que sente é pegar e rasgar em mil pedaços o briefing que o Gorducho abana feito leque. Bob ainda deixou aquele nó para ser desatado, pouco antes de se esparramar na calçada. Campanha pendente para o grupo Beter, que só agora, depois que a poeira baixou, começariam a trabalhar.
Na pequena mesa de mármore, onde travara batalhas diárias com o antigo chefe, tentando enfiar na cabeça dele que não era possível ser criativo como quem faz sanduíche em série, Silva lembra como era difícil aquela rotina. Um briefing chegava à tarde e às vezes no mesmo dia a campanha tinha que estar pronta, mesmo sem quase nenhuma informação. O Bob adorava reunir os clientes, beber, comer, fazer sala e, munir-se de dados sobre as campanhas, nada. Silva senta com olhar de tédio, ou de mofo como diziam os Românticos. Pede para Gorducho ler o briefing.
- Prepare-se para o petardo, companheiro.
- Anda logo.
- Vamos fazer uma campanha para cima, animada, vendedora, bem ao gosto do cliente. A veiculação já está marcada. Corram.
- De novo? O cara usava uma copiadora, só pode ser. Isto é o que chamo de tarefa indigesta. Nem uma caixa de antiácidos alivia. Não tem mais nada?
- Não...acho que ele rascunhou alguma coisa aqui no final. Está bem clarinho, quase não dá para ler.
- Deixa ver. É como se esse papel estivesse sob outro, e o que o Bob escreveu ficou marcado na folha. Mas dá para entender. Olha aqui: “vamos dobrar, Elga”.
- Dobrar o quê ?
- Sei lá. Dobrar o nosso salário é que não é. Deixa isso comigo. Vou ligar para a Galega, quer dizer dona Elga, para ver se desato este nó.
- Por falar em nó, como vai a Guta ?
- Rapaz, tentei mil vezes falar com ela e necas. Soube hoje cedo que está viajando, porque Amália me ligou da casa da avó. A Guta é assim mesmo, desaparece, faz o que tá a fim, não pensa em ninguém. Nem para me avisar que Amália ia ficar só.
- Sim, mas você faria o quê?
- Talvez nada. Pelo menos a levaria para a casa da avó, passaria por lá para darmos uma volta. Mas a Guta só pensa nela, olhando sempre para o umbigo.
- Pega leve, amigão. Você também não é flor-que-se-cheire, principalmente quando um rabo de saia lhe atrai. Ninguém segura.
- Isso acontece hoje em dia, né Gorducho? Antes, quando rolava paixão, eu só olhava o mulherio. Só olhava. Lógico, não sou de ferro. Nunca saí com outra enquanto a gente estava junto, cara. Agora, detono mesmo. Posso não transar com todas do mundo, mas juro que tento. Mas não conta a ninguém. Esse nosso mundo masculino jamais será compreendido por elas.
- A recíproca é verdadeira, chefe
- Pode ser. E chefe é a vovozinha.
- E porque a Guta andava enfezada com o amigo ?
- Meu jovem, acho que aquela mulher é do tipo feminista machista.
- Dialética pura materializada em gente? A contradição como parte da afirmação ? Ficou maluco, isso não existe desse jeito nas pessoas. É esquizofrênico. Que papo é esse de feminista machista?
- Não conhece as mulheres, caro Gorducho. A Guta vinha com aquele papo de espaços individuais, necessidade de sair sozinha com os amigos e etecétera e tal. Amigos? Pois sim.
- Normal.
- E toda vez que me via conversando mais à vontade, alegre, com alguma gata, dava um bode, fechava a cara. Chegava em casa chorando. Ficava perguntando se gostava mesmo dela, se achava ela bonita...
- Insegurança.
- Nela, insegurança. Em mim, machismo. Ó aqui, ó.
- Esticar o dedo é feio, colega. E não faz sentido o que você diz... A Guta aparenta ser toda liberada.
- O espelho da cara, meu caro gordinho, nem sempre reflete a verdade que reluz na alma.
- Profundo, muito profundo. Vou guardar esta para uma ocasião ilustre.
- O pior é que eu era louco por aquela mulher. Um dia a gente bebericava em casa com uns amigos, de repente tocou o telefone. Era um cara conhecido dela, do Rio de Janeiro, sei lá. Chegou à cidade, ia ficar só dois dias e não sei o quê. Na mesma hora, Guta se mandou e foi encontrar o sujeito. E eu fiquei chupando dedo. É mole?
- Insensato.
- Quando um amigo, lá de Nova Orleans, veio fazer um show aqui, me ligou para tomarmos umas. Foi o suficiente para uma crise. Ela veio dizer que eu não me importava com ela, trocando-a pelo trabalho, pelas farras, uma montanha de discrepâncias...
- Insano.
- Qual é, Gorducho, tá economizando palavras? Está aqui ou não ? Câmbio, Gorducho, câmbio.
- Sim e não. Na verdade ainda estou nos braços da Soninha.
- Nos braços da Soninha? Vai me contar tudo, não me esconda nada que sou seu chefe.
Silva brinca com Gorducho, provocando vermelhidão em suas bochechas. É muito tímido. E além do mais corre o boato na agência que é sua primeira namorada. Ele nega, inventando romances antigos. Plagia as aventuras amorosas do Silva. Isto quando o amigo não está por perto para desmentir. O Gorducho se acha diferente da maioria dos homens, do estereótipo masculino, viril, conquistador, decidido. Rejeita a máxima do Silva que é preciso comer qualquer mulher gostosa que der mole, antes que outro o faça. Apesar das diferenças, Gorducho vez por outra confidencia seus problemas de relacionamento ao Silva. Fica à vontade com o amigo, igual a um irmão mais velho. Um grande amigo que escuta seus conflitos pacientemente.
- Começamos naquele dia da comemoração da sua sociedade na agência.
- Vi muito bem. Eu num zero a zero danado e você, senhor come quieto, agindo, passando a mão na Soninha.
- Também não esculhamba.
- Lá vem a Madre Teresa. Vai, conta logo.
- Antes de ontem, quando a gente acompanhava a gravação daquele comercial estressante, onde o gato, já quase de madrugada, depois de três horas pra a iluminação ficar pronta, não saía do canto, porque ficou em choque com a parafernália do estúdio, cara, quase estrangulo o miserável. A gente fez de tudo: botou leite, a dona ficou chamando. O desgraçado tinha que dar só uns passinhos sobre a mesa, mas ficou duro, igual a bicho empalhado e depois...
- Sim, e daí ? O que é que o felino tem a ver? Não desvia da história.
- Calma. Para variar, quando terminou a gravação demos um pulo até aquele botequim, na esquina da rua da produtora, que tem um caldinho esperto. Tomamos umas e outras, beijinhos pra cá, alisadinhas acolá. Cara, nunca me senti tão legal com uma gata. E o gato congelado? Tô com alergia a felino, traumatizado.
- Daí ?
- Aí lembrei que tinha deixado o texto do locutor na ilha de edição, quando levei as fitas.
- Que fita? Que locutor ? Esquece o prólogo, vai direto ao epílogo.
- Esquecer o quê? O áudio foi gravado no outro dia, bem cedo. E se não houvesse ninguém na produtora para abrir a ilha ? Eu me lascava.
- Se não contar logo o que rolou, demito você e lhe enfio numa ilha deserta com um monte de canibais. Fala, porra.
- Estava na ilha...
- De novo?
- Calma, se não perco o fio da meada. Bem, tava procurando o texto na ilha de edição, isto porque...
- Já sei, porra: o locutor tinha que gravar logo cedo.
- Isso mesmo. Aí cara, nem te conto...
- Se não contar morre.
Silva sacou um canivete suíço e apontou para o Gorducho.
- Calma, sem violência. A Soninha, bicho. A Soninha entrou e me abraçou pelas costas.
- Só isso?
Gorducho passa a mão várias vezes pelo braço roliço e arrepiado.
- Deu uma lambida na minha orelha...
- Tá esquentando, Gorducho.
- A gente transou ali mesmo.
- Mentira, não diga.
- O pior... Pior nada. O melhor... Sei lá. Ela também era virgem.
- Como também?
- Ah, sabe muito bem que nunca fiquei com mulher nenhuma.
- Pensei que era folclore do pessoal. Mas nem uma putinha, nada?
- Que nada. Isso nunca entrou na minha cabeça. Transar com uma mulher que não se gosta, que nunca se viu? Não entendo.
- A vida vai lhe explicar direitinho. Foi bom pra você, meu bem?
- Demais. Paixão pura, meu velho. A gente tem saído todo dia. De manhã e à tarde sempre um telefonema. Fiz até uns poemas e coloquei na bolsa dela. Surpresinha, sabe com é ?
- Babaquice.
- Aprendi com o amigo. Já esqueceu o que me contou sobre a época da faculdade: a Guta, os versos de Benjamin Perret, Carlos Drumond e não sei mais quem?
- Leseira de abestalhado. Quem se deu bem foi o Pedrão.
- Por quê?
- Nada, não. Esquece. A conversa está muito boa, mas vamos trabalhar meu filho. Deixa o briefing comigo, que me entendo com dona Elga. Pega aqui esses disquetes que achei no armário do Bob, dá uma olhada, vê se tem algo que valha a pena. E tem mais, a direção de criação é sua, agora sou empresário.
- Sério?
-Tira esse sorriso besta da cara. Não vai ter folga, não. O papai, aqui, vai supervisionar tudo.
Gorducho deixa a sala flutuando, igual a uma bola de ar gigante.
Silva não vê a hora de mergulhar novamente naquele mar de girassóis. A imagem da Galega nua impregna sua mente. Chegou a acordar certa noite, excitado e apavorado. Sonhou com a Galega bailando ao sabor dos ventos. Silva pousando sobre aquele corpo talhado em curvas, feito um corvo voraz seduzido pela imensidão dourada, que reluzia entre as coxas da Galega.
De repente o estrondo. O chumbo das nuvens despencou, escurecendo os olhos dele. O vento tão gelado como a morte parecia soprar em seus ouvidos uma mensagem ininteligível. Do ventre de Elga brotou um gigantesco espantalho da cor das trevas. O cheiro, aquele odor que se prolonga depois de uma trepada, tomou o espaço, queimando seus pulmões. Em vez de rosto, o boneco podre ostentava uma caveira risonha, de ossos trincados. Gargalhava banguela e corria em direção ao Silva, que lutava em vão para escapar do ser medonho, que riscava suas carnes com unhas pontiagudas e afiadas feito lanças. Quanto maior o pânico, mais afundava as pernas na lama rubra que irradiava das patas esqueléticas da espantosa criatura. Onde quer que Silva pisasse, o solo se fazia etéreo. A boca suja e desdentada golfava ratos e caranguejos com as cascas semelhantes a rubis transparentes. Dentro delas a silhueta de um feto chorava. Era o choro de Amália, que engasgada pelo pranto tentava gritar: pai, pai, pai.
Acordou de sobressalto. Que peste de sonho foi este. Já teve outros esquisitos e inexplicáveis. Igual a este, nunca. Devia ser praga da Guta. Só podia ser. Vai ver que ela descobriu seu caso com a Galega e lhe jogou uma praga, enciumada.



Capítulo 11 - Silêncio Azul (La Petite Fille de la Mer, Vangelis)
Descendo, descendo,olhando o infinito azul, silencioso e mortal. Tem vontade de gritar. Seus restos de cabelo dançam feito algas, enquanto a pressão das águas profundas escurece sua mente.
O telefone toca, ecoando pela sala bagunçada que o velho Bob sempre fez questão de manter impecável, organizada. Silva atende. A voz, que ele tão bem conhece, de sussurros prazerosos, soa diferente, seca e direta. Uma bala.
- Precisamos discutir os novos rumos da marca Beter, senhor Silva.
- Por que tanta seriedade ? Afinal a gente...
- Você é o novo diretor da agência que detém a conta das minhas empresas e eu, caso tenha esquecido, sou a sua maior cliente. Portanto, se ainda quer manter minha conta, vá amanhã, lá na casa da praia.
- Por que na praia ? Aqui na agência é...
- Na praia, às nove da manhã. Boa tarde.
O zumbido do telefone desligado intriga o Silva, ainda perplexo com a imperativa Galega. Afinal quem ela pensa que é ? Sua patroa? Certo. É isso mesmo. A ele resta obedecer, para não causar mal-estar no principal cliente da agência, logo nos primeiros dias do seu comando.
Sente na pele o que o Bob engolia para manter aquilo tudo engrenado, funcionando. Começa a amaldiçoar sua sorte. Na verdade nunca desejou ser mais que um redator. Detesta burocracias, reuniões hipócritas com todos aqueles engravatados sorrindo mentiras. Quer, como muita gente, mudar de vida, ter um pouco mais de grana, poder viajar, quem sabe comprar uma Gibson preta igual à de Jimmy Page.
Tudo nesta maldita vida tem um preço, Silva remói as conjecturas, achando a frase um clichê ridículo. Saboreia agora o amargo da verdade contida no adágio. O estômago embrulha, não só pela realidade que lhe cospe na cara, mas pelo enjôo de mais uma ressaca. Acredita que mudou de vida só para agradar a ex-mulher.
Na verdade, nunca se comprometeu com porra nenhuma. A vida não lhe deu escolha, pensa acomodado em suas fraquezas. Antes, ardia de paixão pela Guta e queria fazer de tudo para ficar juntos. Mas ela não mudava o rumo da própria vida para lhe agradar. Silva odiava a determinação e o pragmatismo daquela mulher. Até achava que ela também não tinha muita escolha. Que desejava vencer, superar obstáculos permanentemente. Buscar novos desafios a toda hora como se fossem imprescindíveis para viver. Entre um porre e outro pensou certa vez por que o coração não vem com uma tabela de múltipla escolha? Onde se marque um xis na alternativa correta, na pessoa certa em química, astros, energias e tudo quanto é baboseira que se cria para explicar as frustrações amorosas.
Tudo azul. É a última lembrança que passa por aquela cabeça terminal, enquanto desce, desce. Tons e mais tons de azul giram em órbita do corpo perdido no oceano.
Silva cruza a redação com o rosto molhado de suor. Na copa, joga dois antiácidos em um copo longo e fica com a cabeça em ebulição, dando voltas, igual as bolhas que sobem com o dissolver dos comprimidos. Gorducho observa por alguns segundos.
- Que percalços o afligem, Silvão?
- A Galega.
- Outro encontro de alcova, garanhão notívago e indomado?
- Não começa, pelo amor de Deus. Esquece as firulas.
- Ok, chefe. Em um daqueles disquetes do Bob descobri umas planilhas cheias de contas esquisitas, dinheiro destinado à dona Elga e aquele velho do jornal. Estranho, não?
- Esquisito.
- A não ser que o Bob devolvesse aos Beter um pedaço da comissão que ganhava, para manter a conta, barateando custos, bajulando o cliente. Mas porque dinheiro para aquele jornalista.
- Passe um pente-fino nessa história, depois me explique direitinho. Vou dar uma saída, só volto amanhã de tarde.
- Chefe é chefe.
- Vai te catar, Gorducho. Vou comprar meu celular, os clientes querem apertar ainda mais a minha coleira, inseguros com a nova direção da agência.
- O último dos pré-históricos finalmente capitula sob o julgo da modernidade. Silvão de celular, quem diria?
- Hoje você tá exagerando no vocabulário. Outra coisa, amanhã logo cedo tenho reunião com dona Elga, deve levar o dia todo.
- Sei, sei. Fuck, fuck.
Gorducho sai imitando o som de uma locomotiva, fazendo vai-e-vem com a pélvis. Silva suspira, balança o copo, misturando o resto dos antiácidos que ficou no fundo. Bebe e vai embora.
O sol reluz sobre a ponte do Pina. De um lado o Recife, que ainda preguiçoso ao amanhecer observa o mar, sorvendo o cheiro de maresia que emana do porto. Do outro lado da ponte, barcos esperam, com sapiência milenar, a hora da maré boa para partir. Ou já estariam ali repousando após a faina marítima ? Pesqueiros, pequenos botes, jangadas, vermelhos, azuis, ocres, brancos, desarrumados pela ordem incerta das correntezas.
Entre as embarcações, moleques lustrosos mergulham, nadando em algazarra, sem perceber seus corpos como espelhos do sol que arde escaldando a Terra. O calor da manhã torna o engarrafamento insuportável. Silva resmunga, impaciente. Não quer chegar atrasado e ter que agüentar os achaques da Galega. Como pode alguém tirar a roupa e se transformar tão radicalmente ? Elga nua e dourada era mulher quente, carinhosa. Parecia até apaixonada. O oposto à frieza e à precisão cirúrgicas que imprime quando se veste de executiva. Implacável.
O carro do Silva entra por uma ruela de areia de praia misturada ao barro alaranjado, que algum vizinho deve ter jogado para amenizar os buracos.
A casa da Galega começa à beira mar e ocupa todo o quarteirão. Um muro alto de pedra contorna o terreno gramado, fazendo divisa com a pequena rua. Somente a frente era aberta para o mar, com uma mureta feita de troncos de coqueiro talhados com desenhos de barcos, peixes e criaturas meio gente meio polvo .
O empregado de Elga Beter abre o portão e, após Silva entrar, vai embora sem olhar para trás.
Um solo de violino chega com a brisa. Lembra Stephane Grappelli, mistura de jazz com música cigana, ou qualquer outra junção musical que Silva não identifica exatamente. As portas de vidro abertas apresentam a ampla sala, que ele já conhecia. Um agradável aroma doce chega às narinas de Silva, provocando excitação. É cheiro que exala dos girassóis.
- Elga...dona Elga, sou eu, Silva. Estou entrando.
- Aqui, no escritório. Você já está atrasado. Herdou o defeito do Bob?
- Não, desculpe, o trânsito...
Silva tateia com os ouvidos a voz da Galega, tentando achar o caminho para o escritório, que ele não tem a menor idéia onde fica. Ao passar pelo corredor mal iluminado, a medusa lhe sorri de um quadro. Distraído segue, ainda olhando a estranha figura mitológica. Tropeça e cai, quase batendo o rosto no chão. Vira-se meio sem jeito por causa da queda, surpreendido pela pressão em seu peito, provocada pelo empurrão que a Galega lhe dá com o pé. Deitado, olha aqueles dedinhos brancos e redondos, ergue lentamente o olhar galgando aquelas longas e bem torneadas pernas. O olhar congela e a respiração fica sem ritmo, ao ver que ela esta nua e seus grandes lábios lhe sorriem, envoltos no mar de pelos dourados.
- Dona Elga ?
-Por que tamanha formalidade ? Os manuais de reengenharia não apregoam a relação íntima e profunda entre o cliente e sua empresa ?
- Você pirou de vez...
A Galega o faz calar, colocando levemente o pé em sua boca. Para ela, é como um animal indefeso. Abatido. Acaricia o rosto liso, barbeado, descendo o pé bem devagar, dando voltinhas na orelha. Depois esfrega o peito, por entre os botões da camisa. Com um sinuoso e rápido gesto ela coloca o pé entre as pernas do Silva, massageando seu sexo, com movimentos ondulares, para cima e para baixo. Ás vezes com a parte inferior e rosada. Dá pequenos beliscões com o dedão.
Silva acaricia com as unhas a perna da Galega, que devido à força que faz para apoiar o corpo, está retesada, com as batatas rijas, mas de uma maciez que ele jamais esqueceria. Beija as coxas aromatizadas e tem a cabeça puxada pela Galega, indo de encontro aos girassóis umedecidos, que deixam escapar um forte cheiro de tesão, misturado ao doce do óleo sobre a pele branca de pelos dourados.
Do corredor à sala. Perdem-se entre almofadas. Embolam pelo chão e pelas paredes até transarem violentamente sobre a pia fria da cozinha. As brancas pernas enlaçam o corpo dele, suado e trêmulo. A luz da tarde lança a sombra dos coqueiros nas mornas e calmas águas de Candeias.
A água escorre da torneira lavando as mãos de Pedrão, que acaba de comer uma gororoba qualquer. Sai do bar procurando um telefone público para ligar para o Silva. Está angustiado com a possibilidade do amigo correr perigo. A vida próxima e distante, cultivada aleatoriamente, por ele e o Silva, borrou um hiato em suas existências.
Pedrão dá o passeio tradicional da digestão. Observa o mangue escuro salpicado pelo multicor das embarcações. Aspira o cheiro das águas. Cruza um terreno baldio carregando as mãos pensativas nos bolsos. O moleque que vende mariscos grita, alardeando fresco produto. Pedrão, na calmaria que separa Itapissuma de Itamarcá, desperta da preguiça. Vai até o mercado, onde pescadores bebem sua cachaça e turistas se deliciam, degustando caldeirada, arraia no coco ou peixada. É um corredor de botecos tocados pelos dedos suaves do vento e destacados uns dos outros pelo colorido peculiar das mesas e cadeiras espalhadas no pátio, coberto por um mosaico de luz e sombras que recortam as folhagens de árvores frondosas.
Surge um vulto, presença contínua e irreconhecível na paisagem. Desconfia que esteja sendo perseguido por um cara que estava no bar, em que matara a fome do almoço.
A princípio achou normal o sujeito lhe observar pelo canto do olho, no bar onde comiam. Afinal não era conhecido nas redondezas, onde foi se esconder na casa de um primo. Agora, com a insistência do vulto, não tem mais dúvida, é alguém contratado para lhe matar. O passo acelera. Tenta despistar entrando em uma igreja pela porta da frente e saindo pelos fundos. Dá a volta pela colônia de pesca, entre redes, puçás e o odor de vísceras jogadas na areia. Retorna à nave da igreja. Quando passa pela porta e quer seguir de novo pela lateral da sacristia, o sujeito esbarra com ele. Ficam cara a cara, olho no olho.
Pedrão, no mosaico do desespero, pensa em rezar. O rosto à sua frente está pálido, emblemático. Os punhos se fecham. A sobrancelha arqueja. Gotas de suor rompem a pele. O desconhecido recua e começa a tirar as mãos de trás das costas. Pedrão o segura no pulso. Um riso surpreso brota na face do oponente. Truque? Dissimulação?

- Aí, meu irmão, você não é primo de Manezinho, lá da Rua da Igreja de Cosme e Damião?
- Por quê?
- Ele me disse que você é jornalista.
- E daí?
- Eu sou compositor, queria lhe mostrar umas músicas pra ver se dá pra descolar uma matéria no seu jornal.
Pedrão respira aliviado, põe a mão no ombro do músico, avistando um telefone público na outra esquina, perto da farmácia. Instantes de reflexões os separam da ligação urgente que anseia fazer.
Mais uma vez, a música, afogada na premente necessidade da salvar a pele, vem à tona, desaguando involuntariamente em sua vida, feito rio que sangra vazios e povoados na busca natural do oceano.
- Qual é o teu som?
- Olhe, é só um minuto, que não quero roubar seu tempo. Cresci perto do mar, ouvindo ciranda e jogando capoeira na praia. Lá no Recife vi um show, no carnaval, das bandas que juntam forró com rock, embolada com hip hop e o diabo a quatro. Peguei uma guitarra esperta do meu irmão e chamei um cabra que toca berimbau feito a peste. Deu um som legal, rock e capoeira. E ainda tem uns lances de ciranda.
- Legal. Depois passa lá na casa do meu primo e me mostra. Certo?
O músico, que chegou pelas mãos imprecisas do acaso, despede-se de Pedrão. Ficou feliz por ter encontrado alguém que possa dar uma força ao seu trabalho, disse ao parceiro do berimbau, à noite, tomando umas, acompanhadas por caldinho de marisco.
Negrão pára em baixo de um pé de cajá, aliviando o calor do início da tarde com a sombra da copa pontilhada de frutas amarelas. Anda lerdamente até à beira do canal. Senta-se na escadaria que liga a calçada à lama.
Caranguejos disputam um sabugo de milho. A mente, exausta, deixa-se levar no tempo. Pedrão se vê na Soparia batendo papo, fazendo o que mais gosta, discutindo sobre música.
Enquanto bebem e conversam, bandas dos mais variados estilos se apresentam, no lançamento de uma coletânea independente, do selo Gaiamum Records. No palco o mestre de cerimônias, vestido de Mateus, diz que a música tirou a periferia das Páginas Policiais e a estampou nos Cadernos de Cultura. Alguém na mesa bota novos ingredientes na confusa salada de vozes e idéias, dizendo que o cinema está com todo o pique. Rolos e mais rolos de celulóide registram loucuras e sonhos dos renitentes cineastas, jogando nas telas Baile Perfumado, Simeão Martiniano, Clandestina Felicidade. Cada um na mesa aponta novas tendências também na moda e nas artes plásticas. Do outro lado, um cara que tem o cabelo espetado para o alto, mas parecendo um unicórnio, dispara que o Mangue e a nova cena cultural jogaram nas ruas a cultura sem sobrenomes de Pernambuco. O debate etílico fervilha na cabeça angustiada de Pedrão.
Com os olhos pegando fogo pela insônia que o persegue, Pedrão avista uma garrafa boiando nas escuras águas. Traria mensagem de algum náufrago do destino, isolado feito ele?
Negrão retorna da fugacidade do inconsciente, esmurrado pela realidade, deixando para trás as lembranças de quando tinha controle sobre a própria vida, e não era sufocado pelo rolo compressor da fatalidade. Rapidamente, cruza a rua de paralelepípedos até o telefone público.
Na agência, Gorducho atende a ligação.
- Quem quer falar com o Silva, por favor ?
- Quem está falando? Gorducho?
- Sim, sou eu...
- É Pedrão. Chama o Silva rápido, preciso falar com ele. É urgente, cara.
- Calma, lá, brother. O Silva não apareceu hoje por aqui. Foi para uma reunião com dona Elga Beter de manhã, e até agora não deu as caras.
- Puta merda. E agora?
- O que foi?
- Tem o telefone de onde ele está?
- O cara agora tá de celular. Finalmente aderiu à modernidade e ontem ele...
- Gorducho, pelo amor de Deus, não enrola e me dá esse número logo, cara.
- Sem estresse, meu caro senhor de ébano, representante dos grupos afro-brasileiros. Anota aí.
Pedrão no telefone público tenta anotar o número na carteira de cigarros. O tremor das mãos joga o maço em uma poça, formada pelo esgoto estourado das redondezas. Com esforço, pois a tinta da caneta teima em não riscar a fibra do orelhão, consegue cravar o número entre desenhos obscenos e frases evangélicas. As mãos negras reluzem por causa do suor. Os dedos negros e indecisos teclam. O telefone do Silva chama uma eternidade e dispara, cortando a ligação. Pedrão tenta mais duas vezes em desespero.
Silva desperta do sono e da exaustão, ouvindo o telefone tocando muito longe. De quatro e nu vasculha a sala, jogando almofadas para os lados, levantando o tapete de fibra natural rústica. Nada do maldito celular. Atrás de uma sereia de pedra, vê uma parte do telefone sob a calcinha de seda azul. Engatinha e pega o aparelho sentindo o cheiro dos girassóis excitarem suas narinas.
- Alô, quem é ?
Ruído na ligação. O sinal fica fraco. Silva mexe-se de um lado para outro. Caminha até a cozinha, levando o telefone em uma mão e na outra a calcinha da Galega, impregnada daquele aroma, misto de sexo e doce de algum óleo oriental. Pedrão na outra ponta da ligação não se contém.
- É Pedrão, porra! Sou eu!
- Só um momento, o sinal tá fraco.
- Maldito telefone.
Negrão dá uma porrada no aparelho, arranhando a mão, deixando no aço escovado um risco de sangue.
- Pode falar.
- Sou eu. Pedrão.
- Diga lá, brother! Andou sumido? Tá de caso novo, é ?
- Cara, escuta bem: a Galega roubou o velho Beter em conluio com o Bob e a Raposa Velha, lá do jornal. Acho que ela matou o Bob e tá querendo se livrar de mim também, porque descobri tudo.
- Devagar. Que história essa do Bob roubar e ser morto pela Elga? Pirou, cara?
Pedrão, um tanto confuso, explica toda a transação do superfaturamento das veiculações dos anúncios do Grupo Beter e dos orçamentos falsos de produções em vídeo. Conta a conversa que ouviu no motel entre Elga e a Raposa Velha. Silva fica gelado.
- Negão, que loucura. Pior que estou com ela agora. Não sei nem o que fazer.
- Vê aonde ela quer chegar com você, tenta sondar. Faz de conta que quer entrar no jogo também. Amanhã ligo pra gente se encontrar e cruzar todas as informações. Mas se cuida, que essa mulher é barra pesada.
- Certo. Tudo bem. Mas acho que você tá exagerando um pouco.
- Não é desconfiança. É a realidade, brother.
Silva, com o estômago embrulhado, senta lentamente no mesmo banco de onde caiu na primeira noite que ali esteve, transando com a Galega. Levanta devagar e quando chega à sala a Galega não está deitada no tapete. O barulho do chuveiro chama a atenção. Tenso, vai até à porta do banheiro que está aberta. Entra, vendo aquele corpo, que mais parece um mármore de Michelangelo, por trás do box embaçado. Pequenos peixes coloridos pintados no vidro misturam-se a branca silhueta daquela mulher, que até em um simples banho, exala sensualidade de arrasar qualquer mortal.
- Olá, rapaz, admirando os peixinhos ?
- Não. Um tubarão.
- Ás vezes você é de uma vulgaridade que eu acho... Francamente...
- Acha o quê ?
- Irresistível.
- Você é louca.
- Sou a sua melhor e maior cliente. Tenho direito de ser o que quiser. Inclusive louca.
Silva sorri, sem graça. E mesmo diante do impasse provocado pelo telefonema do Pedrão, não consegue controlar o tesão que sente ao olhar aquele corpo leitoso de formas deliciosas. Vira as costas para o box e sai do banheiro, sentindo um esquisito frio penetrar em sua nuca. Passa a mão no pescoço, balança a cabeça fazendo inconscientemente um gesto negativo. Na sala, bota a roupa. Tem vontade de tomar uma cerveja estupidamente gelada. Na cozinha, abre a geladeira e suspira satisfeito para as latinhas importadas.Pega uma delas e dá um grande gole.
A imensidão azul gela o corpo que nela flutua, como uma bóia de células condenadas à morte. O silêncio azulado da ante-sala do nada agora não o desespera mais. É calmo, posto que inexorável.
No terraço da bela casa de Candeias o casal janta, travando um diálogo banal regado a muito vinho. Silva fica surpreso com a avidez que a Galega bebe cada taça. Ele, depois das cervejas que tomou na cozinha, enfiou garganta abaixo algumas doses de tequila. Empanturram-se de espaguete com frutos do mar e adormecem na sala, anestesiados pela gula e pelo torpor etílico Ela no sofá. Silva no tapete, ilhado por almofadas. Ninguém consegue sonhar.
O marulhar da água doce e salobra encontrando-se com os cascos dos barcos quebra o silêncio da Marina, onde repousa a lancha dos Beter. Uma nesga de rio em namoro permanente com o oceano. A silhueta dos mastros dança sobre o horizonte róseo azulado. Apesar da salinidade, o tom escuro da água, em alguns momentos do dia, lembra os manguezais que circundam o Recife.
Com a maré seca, pequenos chiés pontilham com o branco de suas grandes e desproporcionais patas o preto da lama, que forma o leito dos braços fluviais que recortam a cidade. Do traço natural das águas desenham-se pequenas ilhas imperceptíveis à primeira vista, porque os bairros do Centro encobrem parte da paisagem com sua cortina de prédios.
Vendo fotos que testemunham a passagem do que se rotulou de antigo para um moderno, abortado em sua ignorância, o Recife lembra as cidades européias do pós-guerra. Fotografias esmaecidas de pontes, arcos, igrejas e palácios reduzidos a escombros. Parte da história varrida pela insensibilidade, afogada em pilhas de pedra e pó. Silva, sempre que a jornada escravizante da agência permite, costuma ir ao arquivo público, revendo as fotografias milhares de vezes. Nutre seu desprezo pela insensatez da humanidade com aqueles atestados da destruição. As reflexões surgem nas janelas do cérebro, rápidas, um carro em alta velocidade.
Silva, com o pensamento perdido no caleidoscópio dos últimos acontecimentos, caminha pouco atrás de Elga. Observa os riscos de água sobre o assoalho de madeira fosca do ancoradouro. Quer desistir do passeio, mas não consegue recuar.
A Galega não comunicou a viagem ao capitão do barco com antecedência, provocando certo constrangimento ao administrador que, serviçalmente, desculpa-se, inclusive, pela ausência do marinheiro que pilota a lancha do casal. Ela desdenha, dizendo secamente que não precisa de ninguém. Elga segura firme no braço de Silva, que mesmo relutante, deixa-se levar por entre o mar de veleiros e lanchas.
Silva bebe grandes goles da brisa salina, cortada pelo aroma de um café incógnito. Embarcam. A lancha deixa uma trilha efêmera de espuma esbranquiçada no negror da água. Rumam ao litoral sul.
Os cachos loiros de Elga tremulam ao vento, igual a pequenos ninhos dourados pelo sol, que se levantou há horas. O continente corre em um gigante carrossel. Brasília Teimosa, bairro nascido da resistência popular, erguido à noite pelos moradores e derrubado durante o dia pela polícia, até que fincou pé à beira mar, ao mesmo tempo em que a capital do Brasil, brotava do nada, no meio do país; Boa Viagem e sua parede de concreto comum às praias urbanas. Quiosques pontilham o calçadão, que serve de passarela para fartas e belas bundas e bíceps torneados à anabolizantes; Candeias e a casa da Galega com seu ar de cúmplice; os manguezais logo após o rio Jaboatão e a praia do Paiva, com os corais esverdeados à mostra, sorrindo para o céu. Pinceladas de águas azuis rabiscam a aquarela de rochas naturais, em incontáveis piscinas, onde nenhuma ressaca é incurável.
O silêncio reina. A Galega mira calada o horizonte em frente à lancha. Silva embriaga-se com aquela paisagem tão íntima, perdida em sua mente, exilada da neurose cotidiana que lhe tolhe a vida. Quantas vezes fez aquele trajeto a pé, em aventuras lisérgicas e sexuais.
As pernas de Elga fundem-se com os troncos dos coqueiros na cabeça enevoada do Silva. Igual a um grito entre montanhas, a ligação de Pedrão ressoa em sua memória. O telefone no passado, aquelas pernas diante de seus olhos delineando o presente. O aroma dos girassóis etéreo igual à salinidade do cheiro do mar afagando as narinas.
Elga não pode ser artífice de tão abjeta obra. O que ficou registrado em seu corpo na cama, no chão e onde fizeram amor, nega aquela afirmação mórbida. O doce que emana das pernas ao vento, jamais experimentado em outra mulher, diverge das evidências que batem no rosto do Silva, atraídas pelo alerta de Pedrão que ainda ecoa em seus ouvidos.
- Elga.
- Sim.
- Você era muito íntima do Bob, eu sei. Mas o que lhe aproxima daquele velho jornalista que, me disseram, não saía do seu lado no dia do enterro?
- O sol brilha, a paisagem verde, as ondas brancas. Esse papo fúnebre destoa de tudo. Igual a uma reles paródia de cinema noir. É detetive ?
- É que você é muito sensual, sedutora...
- Ciúmes?
- Gosto de conhecer minhas mulheres.
- Quem disse que faço parte desse clube.
- Não as coleciono. Guardo-as em meu coração.
- Escreva um romance.
Um coqueiro torto belisca fundo a memória de Silva, desviando-o da investigação. Para ele aquela imagem sempre lhe surgiu como uma lápide talhada pela natureza. Naquele ponto, onde a lancha cruza com o sinuoso coqueiro, um amigo perdeu o pai. Velho pescador, que após uma semana de oceano, veio perecer a poucos metros da praia. O mar rebelou-se em grande e inesperada onda, jogando o barco contra o coral, virando-o. O velho morreu preso nas ferragens do motor, talvez olhando a areia branca, tão próxima e tão distante em sua agonia. Faz uns vinte anos que Silva não lembra deste doloroso episódio, que rapidamente trouxe à tona de sua memória o pesadelo com a caveira que gargalhava e gritava com a voz de Amália.
Uma gaivota mergulha. Leva o olhar distraído do Silva a cruzar com o da Galega. Ao longo da viagem é a primeira vez que ela vira o rosto em sua direção, com expressão indecifrável. Silva, formal, avisa e desce para os aposentos abaixo do convés e pega uma cerveja na geladeira. Sempre acreditou que o criador destas praias só as deixou no universo para que alguém tivesse o incomensurável prazer de beber uma gelada, tendo este paraíso como cenário.
Silva limpa a cerveja dos lábios com a mão. Todas aquelas lembranças não conseguem desviar por completo o seu pensamento, ligado no alerta que Pedrão lhe fez. Elga não seria capaz de cometer nenhuma barbaridade, um assassinato. Não. Definitivamente não. Mas, e o roubo? O Bob? Interrogações boiavam na mente confusa do Silva.
A lancha passa por Calhetas, pequena enseada entre Gabo e Cape, de águas calmas e profundas. Barquinhos preguiçosos balançam de um lado para outro. O ocre de algumas pedras emerge para abraçar o calor do sol. E o inesquecível cajueiro solitário, que se ergue imponente cercado pelas rochas. Silva muitas e muitas vezes passeou por ali, ao luar, pelado junto com alguma namorada. Dizia a elas que era a primeira vez que transava sob os galhos do cajueiro, que em noite de lua rabiscava a areia branca com manchas escuras. Um pequeno rasgo de mar lavava a areia daquela estreita praia, particular em desejos, solidária com os amantes.
- Chegamos, meu rapaz.
A Galega quebra o silêncio e as boas lembranças do Silva. Em volta, a imensidão azul. À direita a praia de Suape com o porto em movimento. À esquerda, talvez, a África, logo após o encontro do céu com o mar.
- Estava tão longe, Elga. Lembrei do tempo em que andava por estas praias, sem a menor preocupação, achando a vida um playground.
- Mas ainda é, queridinho. Pelo menos para alguns. Champanhe ?
- Eu só não bebo água do mar para não ser preso pelo Ibama.
Elga balançou a cabeça reprovando a metáfora chula. Mas no fundo sentia arrepios de tesão por aquele cara, tão vulgar quanto desejado. Ela desce à cozinha, demora um pouco e volta com o olhar levemente avermelhado.
- Que foi ?
- Alergia. Acontece toda vez que abro a geladeira.
O champanhe estoura e as taças ficam repletas com o líquido espumante e fresco. Silva tenta retomar a conversa sobre a Galega e seus comparsas. Elga ergue um brinde, elevando a taça contra o azul infinito do céu. Nesta manhã mais infinito ainda, pois se confunde no horizonte com o azul do mar. Pura amplidão quieta. Bebem a primeira taça com a sede dos náufragos. Elga vira bruscamente o corpo para a proa e desaba em um pranto incontrolável. A taça colocada sobre o convés, escorrega e cai na água, afundando devagar. Cristal branco no cristal azul.
Silva recostado na borda da lancha não percebe de imediato o que se passa. Ouve um soluço mais forte da Galega e tenta caminhar até ela, para saber o que havia ocorrido. Tenta, apenas. Cai de cara no convés com o estômago explodindo de dor, a boca espumando e o ar fugindo dos pulmões.
Elga sai do desespero triste e mergulha no ódio. Vira-se para o corpo de Silva caído no chão, com toda a cólera que um ser humano pode destilar. Agarro-o pelos cabelos, sacudindo a cabeça do Silva enquanto berra desesperadamente em um desabafo insano. A derradeira agonia o faz lembrar da filha. Guta lhe aparece, confortando-o.
- Maldito, maldito. Por que tinha que estragar tudo? Acabar com tudo que deixei nascer entre nós dois? Resisti até a última gota de minhas forças, mas a paixão me descontrolou. Nunca me entreguei assim. Que desgraça de homem é você ?
- Miserável! Na primeira noite, levei você para minha cama porque tinha certeza que no outro dia todo mundo saberia que você tinha transado comigo, naquele fim de semana. Era o que precisava. Foi perfeito. Enquanto você dormia nu em minha cama, fui me livrar do imbecil do Bob. Aliás, de tão covarde e apavorado, acabou tropeçando e caindo do terraço, poupando-me o trabalho de sujar as mãos. Voltei correndo, louca para beijar seu corpo inteiro. Não sei o que aconteceu comigo, desgraçado. Fiquei tão louca que tirei a roupa e me joguei em cima de você. Bêbado! Parecia morto, não se mexia. Fiz de tudo para lhe acordar, louca pra transar de novo, e nada. Até que tomei um calmante e adormeci. Sono maldito, inquieto. Levantei cedo e lhe deixei na cama. Tomei um banho, e tive que me masturbar no chuveiro por sua culpa.
Silva se contorce, em convulsão. A Galega o amarra à corda da âncora. Dá um nó bem firme, leva o corpo com dificuldade até a borda da lancha. Corta a corda que prende a âncora ao barco. Um último raio de vida faz a mão do Silva agarrar o pescoço de Elga, forçando os dois a balançarem na borda, quase caindo na água. A mão dele trava na garganta dela, que mesmo desesperada, consegue livrar-se quase sem ar. Apóia-se para não ir ao mar, olhando atonitamente o corpo do Silva afundando na imensidão azul.
O silêncio engole tudo e todos, tanto a bordo como nas profundezas azuladas. O corpo rodopia dando ao Silva uma tranqüila visão panorâmica da sua morte. Chega enfim a leveza da paz que só os defuntos têm o privilégio de sentir.
A Galega recupera a inabalável frieza e volta com o barco, observando o sol por trás dos coqueiros. Sente o pescoço doer, tenta massageá-lo, e quando o toca sente a falta do cordão de ouro que o velho Beter lhe dera de presente, com uma medalha gravada: “Nosso amor será eterno. Do teu eterno amor, Beter.”

Capítulo 12 - Pisando em brasa ( Lixo do Mangue, Chico Science e NZ).
Guta volta da viagem e procura Silva. A pensão de Amália está atrasada, o que a deixa furiosa. Fica assim todas as vezes que ele apronta alguma. Pensativa com seus botões, refaz em segundos os últimos anos e se convence que o Silva não iria nunca se endireitar, amadurecer, virar gente grande.
Um dos motivos das eternas brigas entre eles é o jeito descompromissado que o Silva leva a vida. Guta, metódica e rígida, em relação aos compromissos, não tolera as ausências do Silva, cobrando com rigor suas obrigações de pai. Ela sempre se coloca em primeiro lugar em tudo, até mesmo antes da filha. Diz que nunca abrirá mão de nada que lhe faça bem e que seja importante para sua vida. Nem mesmo para satisfazer carências infantis de Amália.
Vivem, mesmo separados, uma árdua batalha de personalidades. Ela pressionando. Silva escapulindo, igual a um peixe quando alguém tenta apertá-lo com as mãos. Pressão não é com ele. Ela é rigorosa e muitas vezes intransigente na forma de se guiar pelas suas vontades e cobrar o que acha correto e conveniente, beirando as raias do puro egoísmo. Silva, em muitas conversas de botequim com o Gorducho, desabafa a mágoa que sente de Guta por ela ter essa personalidade tão forte e contraditória. O amigo gordo argumenta que o casamento deles era um duelo de bestas do apocalipse, e, invariavelmente, busca em Augusto dos Anjos uma sentença lúgubre para o casal.
Guta liga para a agência e só encontra o Gorducho preocupado. Faz dois dias que Silva não aparece. A agência enlouquecera, os clientes cobrando prazos, os veículos querendo confirmar planos de mídia e o Silva escafedeu-se.
Guta preocupa-se. Afinal o pai do seu filho agora dava para faltar o emprego. Um irresponsável clássico ele nunca foi, esforçando-se para se manter na linha, cumprindo os horários do trabalho, pagando contas quase em dia. Guta tem certeza que algum rabo-de-saia é o pivô da história. Seus pressentimentos de mulher traída lhe garantem.
Nunca perdoou o Silva pelo o que ele classificava de aventuras carnais e sem importância. Cada vez que ficava só em casa, sentia-se abandonada e enciumada com a ausência dele. Era insuportável não tê-lo ao seu lado e engolir que fora trocada por algo fútil como uma cervejada ou uma roda de violão. O pior eram aquelas mulheres vulgares que atraiam o Silva, com seus corpinhos malhados, grandes pernas à mostra e nada no cérebro. E ele ainda tinha a cara-de-pau de afirmar que o fim da paixão entre eles foi provocado pelo egoísmo dela. E que o ocaso do casamento aflorou incontrolavelmente suas carências, o que o levava àquela caçada sexual.
Silva jura por todos os santos que se manteve fiel. Mas nos últimos tempos, devido à crise existencial gerada pelo desencontro amoroso com Guta, não resiste mais aos apelos da carne, que grita mais forte que a consciência.
Guta bate o telefone, irada com as recordações que surgem provocadas pelo zap do controle remoto do inconsciente. Gorducho espanta-se com a grosseria, mas tira por menos, atribuindo o gesto indelicado a mais uma sessão de incompreensões afetivas da peleja Guta versos Silva.
Em seguida Pedrão também liga. Gorducho começa a se preocupar com o sumiço do Silva. É tomado por maus pressentimentos. Alguma coisa séria aconteceu ou estava prestes a acontecer. Estes lampejos de premonição lhe surgiam desde que começou a se envolver com esoterismo, mania da Soninha, buscando respostas para os porquês da insanidade humana.
- Oi, Pedrão, tem notícias do Silvão?
- Boca de siri, brother, não comenta nada.
- Que foi, cara ?
- Acho que a Galega abotoou o Silva.
- O quê?
- Antes de ontem falei com ele pelo telefone, na casa de praia da Galega. Ele me disse que ia dar um rolé de barco com ela. Fui até a Marina. Vi que entraram juntos e depois de um tempo danado só a galega saiu.
- Putz, então aquilo tudo nos disquetes agora faz sentido.
- Que disquetes ?
- Os briefings que achei nos disquetes que o Bob guardava no escritório. Têm uns percentuais anotados em baixo do nome dele, da dona Elga e do velhaco lá do teu jornal. O Bob tinha mania de fazer planilha de tudo.
- Então rolou maracutaia, mesmo?
- Não tenho certeza, mas acho que o cara ganhava umas comissões das produtoras, por fora. Não sei se era só para ele ou para os três. Tudo agora começa a se encaixar. O Bob comia de todo lado, sozinho ou acompanhado.
- É isso mesmo, Gorducho. Os três metiam a mão no bolso do velho Beter. Fui à cola dos vagabundos e descobri tudo. Ai passei um fio para o Silva, contando o caso.
- E ele?
- Por fora, feito mão de afogado. Ficou chapado com a tramóia. E ainda mais quando falei que a danada queria se livrar de mim também.
- De você, brother?
- Ela sabia que eu sabia de tudo. Por isso dei um jeito de pular fora, se não ela me apagava.
- E agora?
- Só tem um jeito. Tenho umas fitas gravadas com a Galega tramando essa história com a Raposa Velha, em um motel. Vamos juntar com esses disquetes e levar à polícia. Faz boca de siri. Se a Galega descobre, é capaz de apagar a gente antes.
- Certo. Agora mesmo. Vamos fisgar essa ratazana.
Pedrão retorna à casa da tia. Ao chegar vê uma verdadeira procissão de senhoras retirando-se. Deve ser novena, pensa. A irmã de sua mãe é muito religiosa.
Chega ao pequeno quarto, que era dispensa antes dele se alojar com a desculpa que estava trabalhando em matéria sobre a destruição dos manguezais. Fecha a porta e busca tranqüilidade na longa seqüência de respiração ioga que ouviu falar não se sabe onde. A calma quase lhe envolve, quando percebe a ausência da mochila. Não que precisasse de roupa ou desse valor ao acessório. As fitas que gravará no motel, com a fétida tramóia, estavam lá, enroladas em cuecas. Sumiram.
- Meu deus!
O grito desesperado de Negrão traz a bondosa senhora. Ela abre a porta com a discrição dos devotos. Angustia-se com o sobrinho chorando, agarrado à velha rede da família.
- Filho, o que aconteceu?
- Roubaram minha bolsa.
- Oh, deus, não se avexe. As meninas levaram um monte de coisas para doação na paróquia. Vai ver que pegaram sua bolsa por engano. Faço outra mais arrumadinha pra você.
- Onde fica a igreja, tia?
- Do outro lado do mangue, em Nova Cruz.
- Tenho que recuperar minha mochila, agora mesmo.
- Barco, só amanhã.
- Vou nadando.
- Valei-me, São Gonçalo do Amarante. Corra até a padaria, que seu Biu tem uma catraia e leva você.
Pedrão atravessa os poucos metros do braço de mangue como se fosse um oceano. O piloto do barco oferece uma lapada de conhaque de alcatrão. Ele aceita. Joga oferenda na água escura e bebe o resto de um só gole.
Pula da embarcação antes que ela atraque. Chega à pequena igreja. Está vazia.
- Deus!
- Filho, que desespero fustiga teu peito.
Pedrão desculpa-se com o pároco, explicando a perda da mochila. Com parcimônia monástica, é levado até o salão onde as doações são distribuídas entre os carentes. Uma pequena porta separa a igreja do salão paroquial. Ao abrir, a visão de um mar de bolsas, sacolas e malas aceleram a taquicardia de Negrão.
- Puuuuuutzzz...
- Sim, filho?
- Poxa, vida, que trabalho lindo fazem aqui.
O reverendo sorri angelicalmente. Pedrão processa rápido as informações, lembranças e alternativas.
- O bip!
- Filho, nem temos telefone. Só na farmácia da esquina.
- Salve minha alma. Leve-me até lá, por Deus.
Pedrão disca o código do bip. Corre de volta ao salão paroquial que, para sua sorte fica a poucos metros. O zumbido entre a imensidão de bolsas quase o enlouquece. Chuta, revira, sacode, sobe em banco, em mesa, corre sem rumo. O padre caminha em sua direção.
- Aqui está, filho.
- Como conseguiu?
- A Providência a jogou em meus pés.
Pedrão abraça a mochila e deixa o corpo cair sobre os aconchegantes fardos, aliviado. A respiração pouco a pouco retoma o ritmo normal. O padre o observa com a cara de anjo que todo padre tem. Pedrão abre o zíper e tateia procurando as fitas.
- Que diabos!
- Santo Pai. Não pronuncie esta palavra na casa de Cristo.
- As fitas sumiram.
- Que fitas? Você não queria a bolsa?
- Tinha duas fitas aqui dentro. Onde estão?
- Filho, calma. Seus olhos parecem que vão saltar do seu rosto. Se havia fitas aí dentro, o Zezinho deve estar com elas.
- Zezinho?
- O molecote que ajuda a organizar as doações. Ele adora música.
Pedrão dispara até a casa de Zezinho. O padre vai atrás, molhando a batina de suor. Enxuga o rosto com o lenço, vendo Negrão quase desaparecer na rua empoeirada. Em frente à casa branca de baixas janelas esverdeadas, Pedrão para, fica esperando impaciente a chegada do reverendo.
- É aqui?
- Você quase acaba comigo nesta correria. É esta.
- Zezinho, Zezinho.
- Que gritaria da peste é esta?
- Dona Rosilene, o Zezinho está?
- Que foi que o danado fez?
- Pegou minhas fitas.
- Padre, o Zezinho roubou ?
- Nada disso. Deixa a gente entrar e falar com ele.
O chão da casa é de cimento grosseiro. As paredes desalinhadas, pintadas de branco. Caiadas. Por trás da cortina de pano vagabundo, branco e desbotado, surge o franzino Zezinho com olhar arregalado, desconfiado.
- Zezinho, meu filho, você pegou alguma fita no salão da paróquia?
- Peguei, seu padre.
- Graças ao bom Deus. Elas pertencem a este senhor. Vá buscá-las.
- Joguei no lixo. Coisa ruim arretada. Um monte de gente falando.
- No lixo!
- Calma, senhor.
- E que barulho é este, lá fora.
- É o caminhão da prefeitura recolhendo o lixo.
Paulão gira o corpo bruscamente, derrubando a quartinha de água sobre a mesa. Atravessa a porta que fica escancarada com a porrada que recebe. Os garis carregam a velha lata de manteiga que serve de lixeira.
- Hei, vocês, parem. Larguem esta lata.
- Tá falando com a gente moço?
- Por favor devolvam esta lixeira.
- Mas ninguém quer ficar com ela, não senhor.
- Eu quero o quem tem dentro.
- O lixo? Vôte! Tem doido pra tudo nesse mundo.
Paulão revira a lixeira, parecendo cachorro vira-lata. Não se importa com os restos de comida, vísceras de peixes e porcaria de toda espécie. Em baixo da casca de mamão, finalmente, as fitas. Ainda na caixa, foram preservadas do contato com a sujeirada. Pedrão arria o corpo na calçada, mirando a goiabeira frondosa que o observa, malemolente, ao sabor do vento fresco que vem do mangue.
Na agência, Gorducho, nervoso, vai até à mesa e pega todos os disquetes com as provas da falcatrua.
A boca começa a amargar com a adrenalina correndo a mil em seu corpo. Na copa da agência toma água, sentindo a garganta ressecada. Sobre a geladeira encontra uns antiácidos, com certeza esquecidos ali pelo amigo. Bem devagar e com as mãos suadas, Gorducho abre os dois envelopes e os joga no copo longo com água gelada. Quantas vezes não presenciou o Silva fazendo a mesma coisa? A lembrança do companheiro faz os olhos lacrimejarem. Será que a Galega teria sido capaz de tamanha loucura? As bolhas sobem no interior do copo gelado causando efervescência na cabeça atônita do Gorducho.
Antes de ir à delegacia sente um impulso incontrolável de ligar para a namorada. Ele e Soninha andam cada vez mais juntos, não desgrudam. Na verdade, não agüentam mais viver em casas separadas. Querem casar. E logo.
- Oi, baby, tudo bem?
- Tudo, fofucho. E você? Pensei que só ligaria à noite.
- Te amo, muito.
- Sei disso. Tá carente, é ?
- Te amo, muito. Aconteça o que acontecer, não esquece disso.
Gorducho chega, inundado de suor. Traz papéis impressos com os percentuais das comissões que Elga, Bob e a Raposa Velha recebiam. O delegado coça a grande barriga que pula para fora da camisa. Caminha até a entrada em busca de, pelos menos, uma brisa tênue. As horas congelam no velho relógio de parede.
Dois caras com o rosto sangrando, algemadas, são empurrados do camburão para as celas. Mal conseguem andar. Nas costas, roxas marcas de condenados que não sabem exatamente o que fizeram.
- As duas coisas aí, doutor, escorregaram e caíram de um barranco, tentando fugir.
- Leve-os para a suíte presidencial.
O delegado analisa cuidadosamente os documentos e as cópias apresentadas. Compara valores e constata a adulteração dos orçamentos e falsificação de notas fiscais.
O agente esquálido de paletó folgado retira-se furtivamente da sala. Nos fundos, perto dos banheiros que exalam amoníaco, liga sorrateiramente para um jornalista, revelando o caso, aguçando a mente sensacionalista do repórter. A notícia vaza pela imprensa e os últimos telejornais da noite mostram retratos dos suspeitos. A polícia resolve intimá-los. Não são encontrados.
Na manhã seguinte, um guarda da polícia rodoviária reconhece a Raposa Velha, que tenta fugir de carro para o interior de Pernambuco. Talvez para pegar um avião particular em alguma de suas fazendas e se mandar para fora do país. A Raposa vai para jaula.
Desesperado com a notícia, o velho Beter tenta em vão achar a esposa. Faz várias ligações e nada. Custa a acreditar que havia sido enganado daquela forma. Caiu na farsa de um folhetim barato: o velho ludibriado pela gostosa sedutora. Talvez fosse o preço que tivera que pagar por ter largado mulher, filhos e até as empresas por causa da Galega. De imediato não consegue racionalizar sobre aquele furacão que botou sua vida de cabeça para baixo.
Beter resolve checar tudo pessoalmente. Logo cedo, pela manhã, vai ao banco, onde há muitos anos não aparecia. Para surpresa do gerente, que repousa os cotovelos sobre o gélido mármore da mesa dos Grandes Clientes, pede para ver todas as movimentações bancárias e constata retiradas inexplicáveis feitas mensalmente por Elga. O sangue esfria, combinando com a decoração impessoal da agência bancária, onde aço e pedra traduzem a imponência do mercado financeiro. Através do seu contador, suborna um funcionário do departamento financeiro da agência do Bob. Confere as notas fiscais referentes ao Grupo Beter. Pede também ao Gorducho cópia de tudo que havia nos disquetes. Nada batia com as notas superfaturadas que a Galega de tempos em tempos lhe mostrava.
Elga acumulou uma pequena fortuna ao longo dos anos, ludibriando o velho marido. A podridão veio à tona, trazendo com ela os ratos que roem as últimas resistências do Beter. A Galega o roubara. Um preço alto pelos anos de prazer curtidos entre aquelas jovens pernas, avalia o velho Beter, sem muita convicção do saldo da relação custo-benefício de um casamento mentiroso.
Passado os primeiros estragos passionais, o calculista empresário começa a refletir mais friamente sobre o caso. Passa a encará-lo igual a um investimento que fizera a longo prazo, entre as roliças e brancas coxas de pelos devastadoramente dourados. A paixão ou a falta de caráter o faz sentir estranha admiração pela ardilosa companheira.
A tranqüilidade existe aparentemente em um pequeno apartamento, silencioso, envolto pelo tumultuado dia, resguardado na penumbra de incensos e finas cortinas que bailam filtrando a luz exterior. Os cômodos parecem maiores do que são, devido à pouca mobília e às cores claras das paredes. Bruxas balançam em suas vassouras, penduradas no teto por fios imperceptíveis, dividindo a vizinhança com gnomos e cristais. Gorducho que havia tomado comprimidos para dormir, contrariando o naturismo de Soninha, perde a hora do trabalho. Abraçado à namorada escapa daquilo tudo viajando na exaustão química do sono, embalado a tranqüilizantes. Esticou até à madrugada conversando com a amada companheira, desabafando que estava farto daquela louca história. Era a gota d’água que faltava para ele decidir largar a cidade e a iniciante carreira de publicitário, cedendo aos apelos dela para casarem e partirem para o interior. Os pais de Soninha criam cavalos no Agreste e com certeza Gorducho se acostumaria rapidamente à nova vida pacata. Esperariam o fim do processo que bagunçou a agência e aguardariam um pouco mais para ver se o velho Silva seria encontrado. Vivo ou morto.
Gorducho vira-se, fazendo a cama balançar. O sono lhe abate. A mente não adormece. Sonha com uma grande farra que ele e o Silva fizeram até de manhã, em um mercado público, bebendo conhaque barato e comendo galinha à cabidela. Encerraram a bebedeira com Silva chorando, lembrando da morte do pai. Da última imagem que tinha do velho, todo embrulhado em lençol branco, encardido, navegando para o túmulo nas garrafas de aguardente que bebeu na vida. Ficara só. Da perda da mãe, que dormiu em um domingo e não acordou na segunda-feira, e jamais acordaria, até a morte do pai, passaram-se apenas um ano. Soninha levanta para fazer xixi. Ao voltar beija o pescoço do Gorducho, que retorna da triste farra com o amigo.
As viaturas se aproximam da casa de praia provocando a curiosidade da vizinhança. Entram na pequena rua de areia de praia com barro alaranjado. Os coqueiros observam pacificamente. O azul inabalável do céu cobre a todos. Um forte estrondo, seguido por violento deslocamento de ar, atinge um dos carros da polícia, arrebentando a porta e, junto com ela, o policial que ia no banco de trás. O fogo provocado pela explosão de um botijão de gás espalha-se rapidamente pela bela casa de praia.
Sirenes aumentam o tumulto no antes tranqüilo litoral. O fogo é intenso. Os bombeiros travam árdua luta contra as labaredas que alcançam as palhas do coqueiro. Outra explosão faz os soldados recuarem. Chegam reforços e a briga da água com o fogo se encerra. A casa praticamente destruída e um corpo carbonizado é o saldo do acidente.
É o dia mais longo da vida do velho Beter. Apavorado chega ao Instituto Médico Legal. O odor de carne queimada quase o faz vomitar. O corpo negro retorcido em uma maca contrasta com a brancura fria dos azulejos. A idade e o medo de ver, entre aquele monte de carne calcinada, algum traço da esposa, fazem o velho avançar e recuar soluçando. Aos prantos reconhece o relógio que dera a Elga no último natal. A emoção joga o velho no assoalho úmido. É levado para uma clínica particular em estado de choque. O dentista da família, amigo íntimo do casal há muitos anos, identifica o corpo, encerrando as buscas policiais.
O negror das cinzas chovendo sobre um campo de girassóis. É a visão que brota na mente do Gorducho ao saber do acidente, lembrando das aventuras amorosas que o amigo desaparecido lhe confidenciava. Com o olhar perdido nos cabelos da namorada que o abraça, tentando confortá-lo, Gorducho é tomado por um sentimento de pena, um pesar pelo velho Beter. Pelo seu pensamento flutuam a suspeita da morte do Silva e o sofrimento do Beter. Dois homens que a vida nunca aproximou, agora possivelmente juntos, vítimas da ganância.

Capítulo 13 - Linhas tortas (Cross My Heart - Sonny By Williamson)
Das ruínas de um antigo armazém, erguidas sobre grande pedra, o horizonte se descortina azul. Pancadas salgadas estilhaçam as ondas nas rochas, fragmentando parte do oceano em milhares de cristais. O todo brilhando em partículas marinhas levadas pela brisa. Escorrendo pelos seixos arredondados, pequenos córregos de água salgada voltam para o mar. Uma mão descarnada traz para este mundo de paz um corpo podre, envolto em sargaços com pequenos caranguejos se fartando em banquete fúnebre.
A notícia do corpo encontrado em Nazaré, vilarejo vizinho à praia de Suape, mobiliza a polícia. Pedrão com a testa franzida chega ao local junto com o delegado. A negra silhueta de cabelos rastafari pára sobre uma pequena elevação. Com olhar panorâmico reencontra aquele pedaço de litoral, dourado pelo sol da tarde. Respira a maresia, enchendo os pulmões de ar, tomando coragem para descer até a prainha rochosa pontilhada de policiais, que vasculham, iguais a chiés no mangue atrás de comida. Devagar se aproxima do delegado que observa a carcaça que parece ganhar vida, remexendo-se por causa das marolas. A salinidade do ar não consegue sobrepujar o odor da carniça. Impossível identificar aquele corpo. Pouco sobrou além dos ossos. De repente o sol, que baixa rapidamente empurrado pela noite que quer chegar, reflete em algo que brilha na mão ossuda, ferindo o olhar de Pedrão.
- Delegado, tem alguma coisa brilhando ali, na mão do cadáver!
- Que diabo será isso, agora?
- Só há uma forma de saber...
O policial põe o lenço no nariz e examina o corpo com uma vara de bambu... Encontra o que parece ser uma medalha, presa em corrente dourada. Consegue com dificuldade retirá-la do emaranhado de ossos e algas. Alguns policiais comentam pelo canto de suas bocas que é ouro. Só pode ser, para suportar a corrosão da água do mar. O delegado de cabeça baixa caminha de um lado para outro. Tem o olhar magnetizado pela medalha. À frente de Pedrão estica a mão, abrindo a palma avermelhada na cara dele, que engole seco lendo a inscrição: “Elga o nosso amor será eterno. Do teu eterno amor, Beter.” Lágrimas rolam pelo rosto de Pedrão.
É noite. Algumas nuvens começam a cobrir de cinza o brilho distante das estrelas. Ao sair da delegacia onde recebeu a confirmação da morte do Silva, Guta vê Pedrão recostado no velho Fiat 147. Os dois, imobilizados, se olham. Um tapete tecido com o emaranhado das emoções se desenrola entre eles, ligando passado e presente. Ela acena. Pedrão responde, caminhando até Guta. Um forte abraço expele daqueles corações as lágrimas da dor, que só uma grande perda pode causar. É o vazio irreparável, provocado pela sensação de ter ficado um pouco mais sozinho neste mundo.
- Quanto tempo?
- Podia ser em uma situação melhor, gatinha.
- Gatinha? Faz tempo que não escuto isso. Quase esqueci.
- Eu, não.
- Por favor, Negão, não chore também. Você sempre foi o mais forte da turma.
- A turma ficou menor.
- Meu coração, também. Acho que o Silva levou junto com ele um pedaço da minha vida, parte de minha história e de Amália.
- Alguém feito o Selva sempre faz falta. Amizade e sinceridade são gêneros de primeira necessidade, cada dia mais escassos.
- Odiava o jeito irresponsável dele tocar a vida. Mas era a forma que tinha pra se defender, fugir das neuroses desse mundo doido.
- Cada um joga com as cartas que tem.
- É verdade. O pior é que sinto que faltou algo a ser jogado, a ser vivido entre mim e ele. É como se a nossa partida terminasse aos vinte minutos do segundo tempo, sem nenhuma explicação.
- Não sabia que se ligava em futebol.
- Há tantas coisas que você não sabe.
- Posso ser cabeça dura. Acredito que fui por muitos anos. Chegou a hora de aprender alguma coisa a mais nessa vidinha de merda. Há tempo ainda?
- O resto da vida.
Em silêncio entram no carro, seguem inconscientemente para Olinda. Param nos Milagres, na entrada da Cidade Maurícia. O mar arrebenta forte contra as pedras, revelando pedaços submersos de antigas casas, engolidas pelo avanço da maré ao longo dos anos.
A correnteza da vida também afoga sentimentos e lembranças que uma simples gota, uma lágrima apenas, pode fazer emergir. Pedrão e Guta, ainda mudos, sentam-se na rocha umedecida pela maresia. Olham o infinito escuro da noite, tão calada quanto eles. Guta encosta a cabeça no ombro de Pedrão, que tenta abrir o antigo casaco do exército para aquecer a amiga. Surpreende-se pelo pequeno livro de poesias de Omar Khaiam que está no bolso interno junto à carteira, encontrado pela manhã quando revirava suas lembranças, arrumando o armário do quarto.
- Dá uma olhada no que encontrei.
- Sua agenda?
- É um livro que achei lá em casa.
- É bom ?
- Não sei, só li uns pedaços. Peguei com Silva, ainda na faculdade.
Guta sente a garganta apertar e o pranto lhe sufocar o peito... A chuva é fina. Abraçam-se. Gotas do céu, ou talvez lágrimas, molham a capa da antiga publicação, que, em cumplicidade com o mar e a noite, testemunham o reencontro destas almas promovido pelo acaso da morte.


Capítulo 14 - Balada fria (Cause We've Ended as Lovers - Jeff Beck)
O mar abraça o planeta. Seus braços lavam rochas e areias em ritual de purificação, salgando todos os continentes. Em direção às correntezas do Hemisfério Norte, o oceano esfria. Aproximam-se as regiões geladas. O vento, aço afiado, corta o mundo. Poucos metros afastam dos olhos o horizonte encoberto pela cortina gasosa, espessa e cinza. Em todas as direções, o silêncio ecoa. A Terra, calada, revela em signos codificados o poder tranqüilo e aniquilador da natureza. As cores silvestres , petrificadas. Bichos, de todos os portes, ausentes das encostas e campos. Árvores esqueléticas. As folhas jazem sob o tapete de neve. O céu de chumbo quer desabar nesta manhã.
Um corpo mergulha, nu e branco: gelo que não derrete na água. A brancura baila no fundo azul. O vapor flutua sobre a superfície da piscina térmica, feito cortina de fumaça. O corpo ágil faz evoluções, desenhando curvas nos azulejos com motivos nórdicos. Longas mechas de cabelo dançam em câmara lenta, submersos na água morna. Cachos desenrolam-se feito cascatas, tão amarelados quanto o sol ausente, distante no atlântico sul.
Igual a um gigantesco salmão saltando para fora dos limites oceânicos, a mulher de cabeleira farta volta à superfície, esfregando o bico dos peitos na perna do jovem belo e musculoso que a observa nadar. Olhos se magnetizam. Corpos ficam arrepiados pelo sopro frio que desce a montanha. Ele tenta dizer-lhe algo, mas ela, imperativa, silencia-o com um beijo. Tem a voracidade dos bárbaros. Toma o que julga lhe pertencer. Línguas quentes penetram ouvidos frios, provocando erupções nos poros. Artérias pulsam, cadenciando o movimento, antes descompassado, de mãos e pernas emaranhadas.
O fluido quente do prazer escorre pelas brancas pernas da mulher que respira ofegante. Ela passa a língua pelo pescoço másculo, chegando sinuosa a ponta da orelha. Morde. Ele abraça o farto corpo da fêmea. Ela geme. Um sussurro traz à tona os desejos mais profundos e dissimulados, embrulhados em doce voz feminina.
- Nosso amor será eterno. E e eu, meu rapaz, sua eterna, Elga.
Do alto da rocha, onde a luxuosa casa se encrava, de costas para o mar, protegido do frio da piscina pela calefação aconchegante da sala, o velho Beter traga prazerosamente o charuto cubano, aguardando a noite abraçá-lo junto com a esposa amada. Bebe um conhaque. Solta novelos de fumaça que, transpondo as cortinas, condensam-se no vidro da janela.

f i m.